Sociedade
Máquinas de prazer
Da pornografia aos jogos online, a produção do desejo na internet



Em 2023, a indústria global da pornografia foi avaliada em 287,8 bilhões de dólares. Estima-se um crescimento de 8,6% dos negócios mundiais do sexo até o fim de 2024. Em 2034, essa máquina mundial de cultura de gozo, “felicidade” programada, gestão do desejo, contradição passiva entre satisfação e angústia, paralisação em si mesmo, autogestão do orgasmo sem o outro, com a imagem subjetiva como outro, fora todos os seus mundos colaterais que, no caso, também são centrais, deve alcançar o valor de 706,2 bilhões de dólares. Essa expansão será acoplada e correlata a todo desenvolvimento e nova ocupação das redes mundiais pelas novas máquinas – e sua ordenação algorítmica, que sabemos bem ser política – de Inteligência Artificial, em um mundo de crise da inteligência humana que não seja esta.
Esses números ainda podem ser pequenos, se imaginarmos que em cada celular existente na terra, de cada cidadão desse tipo de cultura, estão abertas e disponíveis permanentemente, ao alcance de um ato psíquico qualquer, de um toque, sites, plataformas e redes inteiras dedicadas à pornografia, à pornografia conforme a indústria mundial.
De fato, quase não há fome de pornografia no mundo. Em seu número de inverno de 2016, a revista norte-americana de crítica cultural n+1 publicou um conto sobre a existência ao modo sujeito-espectador tecnopornográfico, um ensaio que, disfarçado de literatura, estudava a configuração de práticas para a vida desse real gozo disponível. Vida na imagem gozo, generalidade que se faz corpo particular, masturbação e tempo morto. Em algum momento, o autor, Tony Tulathimutte, especulava que, com a continuidade constante das imagens pornográficas e seus efeitos sobre todos, como a própria cultura existente, com seu público super-interessado, ativo (mesmo que passivo), e certo, só faltaria à pornografia alguma modalidade de crítica para vir a ser considerada uma arte. Ele imaginava completar o sistema social dessa forma de cultura, certamente bem mais ampla do que a dos leitores de “literatura”, ou a dos extintos cinéfilos, com o que de fato existe. Festivais, redes e chats, troca de informações, catalogação e avaliação, no nível subjetivo radical da vida polimorfa perversa do sexual quando encarado diretamente, sexual que encontra a imagem do mundo, de uma ordem de consumo toda fechada em si mesma, porém universal – evidentemente já existem, fazem parte do negócio, acoplados aos seus próprios objetos, as imagens de excitação, de um sexual que existe assim.
Consumir imagens, e ser consumido por elas, é ser sujeito
Em 2023, o número de jogadores de jogos eletrônicos, os games baixados pela internet, pode ter alcançado 3,3 bilhões de espectadores em todo o mundo. Ou seja, 40% da população mundial, segundo um relatório da consultoria Newzoo. Essa festa global, individual e coletiva, de tempo dedicado a esses mundos simulados industriais, entre imaginativos, construtivos e fascistas, deve ter movimentado 188 bilhões de dólares no ano passado. Adolescentes são ídolos internacionais de campeonatos de games, em geral de tiro, assassinato e de guerra, quando não de World Fifa, com seus avatares de jogadores de futebol de videogame, que devem ser comprados. Outra pequena massa de jovens paga relativamente caro para ver suas performances em disputas em telas gigantes, em ginásios gigantes. A Pesquisa Game Brasil de 2023 estima que 70% da população brasileira joga alguma coisa. De 14 mil entrevistados, 82% acham os games uma das principais, se não a principal, forma de entretenimento. Segundo o Ministério da Cultura, o setor representa 3,11% do PIB brasileiro, empregando em todos os níveis do negócio 7,5 milhões de trabalhadores. Isso em uma época em que a indústria total do País participa com cerca de 10,5% do PIB…
Crianças que começam a se interessar por futebol já não conseguem entender como Pelé é melhor que Neymar. Porque o último é um jogador avatar de games e sites de propaganda de World Fifa do YouTube. Mais ou menos como Walter Benjamin disse a respeito do cinema, nos anos de 1930, toda a história deverá ser recontada, e redesenhada – o site turbinado de propaganda neofascista Brasil Paralelo que o diga – por esse novo universo de sujeitos imagens. Jogadores, que brincam grande parte da vida nesse sistema de experiências virtuais e imagens em movimento, sem profundidade nem paz, como as antigas imagens do cinema, mas com muita excitação, dúvida sobre a tarefa e a competição, choque e descarga. Um único canal brasileiro de comentários sobre jogos em redes sociais, o Matando Robôs Gigantes, tem 310 mil inscritos no YouTube e mais de 67 milhões de visualizações. E há outros. O influencer brasileiro “Coelho no Japão”, que discute e apresenta jogos e consoles da marca Nintendo, tem 74 mil seguidores no YouTube, mais 59 mil no X e 45 mil no TikTok. Comparem-se esses números e a estabilidade de fluxo deste mundo com um professor discutindo Marx, Freud ou Antonio Candido, em uma sala com 60 alunos em uma universidade pública do Brasil, e teremos a intuição da escala material real de uma tragédia espetacular.
O mesmo mundo de satisfação mágica, aos toques de botão, e controle subjetivo pela imagem, está em jogo no universo final dos cassinos eletrônicos liberados no Brasil. Esse, não por acaso, se abate diretamente sobre todo o mundo dos mais pobres. Muito rapidamente, em poucos anos, uma epidemia de saúde pública, dissolução subjetiva e destruição econômica, fora a lavagem universal de dinheiro de máfias, jogo do bicho e todo tipo de assalto em grande escala, alastrou-se pelo País. As bets passaram a empregar e pagar pela propaganda direta de todo tipo de influencer, de Galvão Bueno à mais jovem propagandista de maquiagem no Instagram e no TikTok, para engolir toda uma sociedade disponível ao seu nível básico de manipulação psíquica. No auge de uma crise fiscal, o governo de assalto e violência de Jair Bolsonaro liberou o cassino massivo eletrônico, da mesma forma que liberou as armas e a mentira em massa em suas redes, que o elegeu. As máfias agradecem o empenho estatal. Uma face muito fina e inteligente do Brasil.
Neste ano, 216 bilhões de reais serão gastos em coisas como o jogo do tigrinho. O Ministério da Fazenda estimava, inicialmente, 150 bilhões. Causou escândalo moralista, diante do quadro dado, que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família, os mais pobres, tenham gastado 3 bilhões de reais em apostas nas redes. O que essa população, em seus lugares sociais fixados, pode esperar deste mundo, senão isso?
Por fim, para não esquecermos em que altura estamos, chegamos ao TikTok, a mais sofisticada das redes sociais baseadas em recepção de imagens: aquela em que todo espectador é também um produtor, um diretor, um ator, ou um coletivo realizador de filmes curtos, feitos com os próprios telefones, produtos rápidos e felizes que podem passar em qualquer parte. Neste espaço de rede mundial, concebido na China, a excitação de ver, que não para, é também o prazer de se mostrar. Além da história, o cotidiano é reduplicado como show e performance, e para muitos só faz sentido se for mediado tecnicamente assim. Em 2022, a rede contava com 1,7 bilhão de usuários, com 98,6 milhões de “prodossumidores”, lembrando a ideia profética de Décio Pignatari, só no Brasil. Quase metade da população.
Não frequento o TikTok nem o Instagram, as redes sociais que funcionam por imagens diretas, que mais arrebatam o desejo. Tento me manter um pouco livre, e ao mesmo tempo alienado, deste mundo, deste fluxo infernal de montagem gozosa de um sonho global, em que o consumidor é mais que responsável pela coisa toda. Conversando com a moça que trabalha em casa, uma brasileira normal, que odeia Lula e Alexandre de Moraes, vai sempre à Igreja e pede a Deus que lhe dê oportunidades de trabalho e ilumine o seu caminho – é a igreja evangélica que lhe dá uma encarnação no tempo e no espaço e em uma comunidade, política – ela me diz, sorrindo: “Eu gosto do TikTok, lá tem tudo”. Mônica viaja na rede enquanto está no ônibus e no metrô, e passa algumas horas todos os dias nela, antes de dormir, por volta das 11 horas. Às 5 da manhã, levanta para pegar um ou dois ônibus, e o metrô, viajar uma hora e meia ou duas, para chegar nas casas do centro rico da cidade, onde seus patrões que têm acesso à renda nacional vivem, e onde ela trabalha por 250 reais a diária. Como ela, milhões contam com o TikTok para viver algo nessas condições.
Na mesma linha do TikTok, de exploração produtiva em todos os níveis de necessidades psíquicas humanas, o game Roblox faz com que crianças desenvolvam partes e áreas do próprio jogo, enquanto o jogam. Elas são também pagas em moedas digitais. No caso, brincar, trabalho e dinheiro ganham uma fusão nova no dispositivo final dessa conquista da vida, corpo e a-sujeitados.
“Eu gosto do TikTok, lá tem tudo”, me diz a faxineira
Como sabemos ao menos desde Marx, quantidade material, e produtividade, é qualidade. Não precisamos recuperar a história arqueológica da pornografia no Ocidente, das elegias eróticas romanas, às loucuras demoníacas medievais, ao desrecalque libertino emancipatório do século da razão, ao impacto crescente e exponencial das imagens reprodutíveis, desde que elas surgiram no século XIX, com a fotografia, até as especulações finais de Foucault, para sabermos que algo de verdadeiramente imenso está acontecendo. A base da globalização mundial dos mercados é o fundo tecno administrado do acesso universal à cultura, como fluxo contínuo de imagens, em que as consumir, e ser consumido por elas, é ser sujeito. Há um magma de fundo, da estase psíquica do tempo final da crise mundial do capital, no fluxo erótico constante de informação sem referente, gozo especular e excitação por minuto. Se o capitalismo de hoje gerou a crise do emprego, e do valor do trabalho, como uma tensão constante de fragmentação e esquizoidia social universal, ele também integra a força do desejo na sua máquina generalizada de fluxo de imagens, de excitação em rodízio rápido. A estrutura semiológica única do processo é que a imagem que vejo agora é o tempo-limite de sua própria superação pela próxima, que virá, aquela que deverá finalmente redimir a perda total da experiência. Mas esta segunda, ela mesma já está morta, pela próxima, que virá, e esta, pela próxima e assim indefinidamente. Imagem tempo vazio, de gozo constante e rápido, em moto contínuo, é o segredo bem visível do negócio.
Picos de excitação na infinitude do mundo em fluxo de imagens não falam mais a nenhuma memória ou consciência, transferidas para essa forma técnica de viver. Talvez estejam gerando um inconsciente, não ótico, mas mundialmente associado e randômico, do qual não sabemos de nenhum modo qual será o resultado. Se é que há resultado. Apenas sabemos que a atuação do consumo mundial, extenuante e com os dias contados, passa por ele. Um inconsciente fundido ao gozo da produção permanente do microshow de cada segundo, a respiração universal do mundo como mercadoria viva, e sua simultânea destruição de todo referente, agora voltada à própria ancoragem ambiental da vida.
Por isso, a pornografia geral das redes me parece ser a matriz deste universo. A explicitude de uma imagem, objeto, excitação, que tem pouca variação em relação a todas as outras disponíveis bem ao seu lado – pois tudo é como Carlos Augusto Calil me contou sobre a definição da lei portuguesa de filmes pornográficos: “Aqueles em que os órgãos sexuais são os atores principais” – de forma que a coisa representada excitada, a repetição, o vazio e a mínima variação, ainda a ser encontrada, ou não, por um sujeito dessas condições de vida, engajando o corpo como descarga direta na imagem, quando não o prazer direto do dinheiro na, e da, imagem, é tudo o que se tem na vida. •
*Psicanalista e ensaísta, professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Máquinas de prazer’
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