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Briga de foice

A ala mais retrógrada do setor ataca a Moratória da Soja, que fez o desmatamento despencar na Amazônia

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Gritaria. O boicote às lavouras que avançam sobre a floresta é apresentado pelos ruralistas como uma ameaça à livre concorrência – Imagem: Pedro Guerreiro/Agência Pará
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O pedido encaminhado pela Aprosoja de Mato Grosso ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), na quarta 11, para avaliar as práticas comerciais das empresas que assinaram a Moratória da Soja, marca uma nova escalada na ­disputa entre a ala mais retrógrada do agronegócio – negacionista climática, defensora do uso indiscriminado de agrotóxicos e apoiadora do golpe – e o grupo de 66 empresas e organizações brasileiras e internacionais, incluindo as signatárias daquela moratória, que, no dia seguinte, lançaram um manifesto em defesa do acordo.

As tensões aumentaram a partir da assinatura do Acordo UE–Mercosul, que tende a elevar a pressão europeia sobre produtores brasileiros, após o prazo de um ano para enquadramento das exportações do País nos critérios de rastreamento necessários à identificação da origem da soja, se cultivada ou não em territórios desmatados da Floresta Amazônica. O conflito acirrou-se também com a notícia do deslocamento de fazendeiros gaúchos que tiveram o cultivo da soja prejudicado pelas enchentes e, agora, fazem o plantio em áreas obtidas na Amazônia.

Apesar de a Moratória da Soja ter 18 anos, só agora a Aprosoja–MT considerou necessário fazer “uma análise mais detalhada, guiada por novos dados e novos argumentos técnicos”, sobre o efeito do pacto no mercado e na economia das regiões produtoras. Não bastasse, os estados de Mato Grosso e Rondônia aprovaram recentemente leis que retiram incentivos fiscais das empresas participantes do boicote da compra de grãos oriundos de fazendas que desmatam o bioma Amazônico, e existem propostas semelhantes sendo discutidas em Goiás e no Pará. As signatárias do manifesto em defesa da moratória, entre elas a Imaflora, o Ipam e o Instituto Centro de Vida, alertam para a importância do acordo no enfrentamento da crise climática e para assegurar a biodiversidade.

A Aprosoja–MT questiona práticas comerciais das empresas defensoras da Moratória da Soja, as quais, segundo a entidade, violam o princípio da livre concorrência e prejudicam o desenvolvimento sustentável das comunidades locais. A Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), uma das patronas do acordo, contesta a visão da ­Aprosoja–MT e sublinha que a moratória não é apenas entre tradings, mas uma iniciativa que inclui a sociedade civil e o governo. e que provou ser crucial para proteger a soja brasileira de boicotes internacionais ao garantir que não haja desmatamento, legal ou ilegal, no bioma Amazônia.

Apesar de a iniciativa ter 18 anos, só agora a Aprosoja de Mato Grosso considerou ser necessária uma “análise detalhada”

Com parte dos plantadores de soja contrários à moratória e muitos dos esmagadores favoráveis ao acordo, o recurso ao Cade seria, para alguns, indício do risco de judicialização do problema. O acirramento das divergências aumenta a possibilidade de 2025 ser cenário de um choque inédito de interesses dentro do próprio agronegócio, setor mais pujante da economia, antes caracterizado por uma aparente unidade, e hoje fraturado ao menos quanto ao posicionamento em relação à Moratória da Soja.

“A decisão da Aprosoja não surpreende porque é a posição histórica da entidade. Ela entende que medidas ambientalmente sustentáveis são ruins para a competitividade brasileira, o que é um erro”, avalia Sérgio Sauer, coordenador do Observatório de Conflitos Socioambientais do Matopiba. “Posso estar equivocado, mas acredito que uma possível judicialização não resultaria em problemas para as exportações. A não adoção de medidas protetivas é que traria dificuldades, basta ver a decisão da União Europeia de barrar a importação de produtos oriundos de desmatamentos.”

A moratória foi estabelecida inicialmente entre a Abiove e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), que representam cerca de 80% das compras de soja brasileira, para não adquirir o grão de fazendas com lavouras em desmatamentos realizados após 22 de julho de 2008 na Amazônia, visando eliminar os danos ambientais da cadeia produtiva. O pacto também proíbe a compra de soja de fornecedores integrantes da relação de exploradores do trabalho análogo à escravidão.

A sua governança e sua operação são de responsabilidade do Grupo de Trabalho da Soja, constituído pelas empresas associadas à Abiove e à Anec, que inclui as principais trading companies, cooperativas, esmagadoras de soja e instituições financeiras, além de entidades como o Greenpeace. A iniciativa é, de acordo com o portal da Moratória da Soja, o exemplo mais bem-sucedido do mundo de conciliação do desenvolvimento da produção agrícola de larga escala com a sustentabilidade ambiental, em seu quesito mais crítico, o do desmatamento zero: “Ela não impediu o desenvolvimento da sojicultura, mas priorizou o uso de terras abertas anteriormente à moratória, portanto mitigando seu avanço sobre novos desmatamentos”.

Reação. O monitoramento da soja tornou-se exigência na Europa. Muitos opositores da iniciativa são negacionistas climáticos e, não raro, também golpistas – Imagem: Miguel Schincariol/AFP e iStockphoto

O monitoramento da moratória abrange 76 municípios, responsáveis por 98% da soja produzida na floresta amazônica. A supervisão utiliza “um vasto conjunto de imagens de satélites adquiridas ao longo de cada safra para detecção de lavouras de soja nesses desmatamentos”. Para complementar as análises, também se recorre à base de dados dos desflorestamentos ocorridos no bioma publicados pelo Prodes, programa coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Esse acompanhamento mostra que, entre 2002 e 2008, os municípios com produção de soja na Amazônia desmatavam, em média, 10,6 mil quilômetros quadrados por ano. Depois da adoção da moratória, a taxa caiu para cerca de 3 mil quilômetros quadrados por ano. Uma evidência de que o acordo contribuiu para a queda do desmatamento com o objetivo de plantar soja é o fato de que apenas 3% da leguminosa plantada na Amazônia está em áreas desmatadas após 2008, destacando que não foram comercializados grãos provenientes dessas áreas. A moratória foi criada em 2006, após o relatório Eating up the Amazon, elaborado pelo Greenpeace, apontar que a sojicultura estava avançando no bioma amazônico.

Um estudo do Ipea destaca a importância da criação da Moratória da Soja, que não impede novos desflorestamentos, mas veda a produção de soja nesses espaços. “O objetivo é não incentivar a conversão de novas áreas para soja e estimular o aumento do uso da terra mediante a expansão da soja sobre áreas abertas antes da moratória. Na atualidade, 97,5% da área cultivada com soja no bioma está sobre essas áreas, o que demonstra, assim, a eficácia dessa iniciativa, no sentido de harmonizar a produção de alimentos com a sustentabilidade ambiental”, conclui o estudo. Segundo o Repositório do Conhecimento do Ipea, as empresas signatárias do acordo representam em torno de 87% do mercado de soja na Amazônia.

Com a moratória, a área desmatada em cidades produtoras de soja na Amazônia caiu de 10,6 mil para 3 mil quilômetros quadrados por ano

Desde meados dos anos 2000, a associação entre desmatamento e mudanças climáticas começou a atrair as atenções para a Amazônia na imprensa internacional, destaca o antropólogo Caio Pompeia, no livro A Formação Política do Agronegócio (Ed. Elefante). A primeira mudança institucional relevante, no sentido de considerar a preocupação crescente com o desmatamento e seu efeito sobre o clima, foi a Moratória da Soja, criada “sob demanda de multinacionais na ponta da cadeia internacional de soja, que notavam o crescimento dos riscos estratégicos”, sublinha o autor.

A cizânia no agronegócio em relação à preocupação com a mudança climática e a Moratória da Soja não parou, porém, de crescer. A Confederação Nacional da Agricultura desferiu inúmeros ataques às metas do País para redução da emissão de gases de efeito estufa, lembra Pompeia.

Integrantes da Aprosoja–MT, como o ex-diretor Antonio Galvan, foram apontados por relatórios de inteligência da Abin, apresentados durante a CPMI do 8 de Janeiro, como líderes do Movimento Brasil Verde e Amarelo, responsável pelo envio de caminhões para Brasília e pelos bloqueios rodoviários realizados logo após o resultado das eleições de 2022. Outros dirigentes da entidade, na Bahia e em Goiás, também participaram do financiamento golpista, segundo a Comissão Parlamentar que investigou os atos antidemocráticos. De acordo com a Abin, o grupo tinha capacidade de mobilização nacional e organizou, desde 2019, atos em Brasília com deslocamento de máquinas agrícolas e caminhões. Além disso, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, afirmou em sua delação que o dinheiro repassado pelo general Braga Netto, preso no Rio de Janeiro, aos “Kids Pretos” para assassinar o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, teria sido levantado junto ao “pessoal do agronegócio”. •

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Briga de foice’

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