Mundo
Mirem-se no exemplo
A coragem de Gisèle Pelicot terá o condão de melhorar o tratamento às mulheres vítimas de estupro e violência?


Em todo o mundo, o lar é o lugar mais perigoso para as mulheres, descreveu um documento da Organização das Nações Unidas lançado recentemente. Era uma referência ao feminicídio, o assassinato de mulheres por um parceiro ou ex-parceiro. Mas, como soubemos nos últimos três meses durante o julgamento de Dominique Pelicot, 72 anos, e dos 50 homens “comuns” que a visitaram quando ela estava drogada e em coma para fazer sexo com seu corpo inerte, o lar também não oferece refúgio para as vivas.
Pelicot renunciou ao seu direito ao anonimato e permitiu que os vários vídeos de estupros noturnos gravados por seu ex-marido fossem exibidos no tribunal. “A vergonha é deles”, apontou ela, sempre calma, recusando-se a ser humilhada. Foi aplaudida diariamente por feministas na frente do tribunal durante o julgamento em Avignon, no sul da França. “Deixem-nos dormir”, diziam os cartazes. O caso motivou ainda manifestações por todo o país contra a violência de gênero. Esse é “um assunto de todos”, não apenas uma preocupação das mulheres, disse um manifestante.
A misoginia, entretanto, é adaptável e resiliente, assim como a capacidade do patriarcado de proteger seus mais pervertidos e poderosos. Prometeram mudanças após a exposição de Jimmy Savile, Harvey Weinstein, Jeffrey Epstein e outros. As mesmas promessas serão feitas novamente após a plena compreensão da escala do abuso cometido durante décadas pelo falecido Mohamed Al Fayed, seus atos permitidos por algumas funcionárias, “um policial domesticado” e sua riqueza.
Como demonstra o caso Pelicot, novas fronteiras de abuso estão a surgir, como o voyeurismo auxiliado pela tecnologia de vigilância, a influência onipresente da pornografia focada na mulher frágil e o cyberbullying desregulado que expõe mulheres na internet a milhões de usuários. O direito de uma mulher à privacidade pessoal, segurança e proteção está em um lugar perigoso.
Michel Barnier, o ex-primeiro-ministro francês, disse que “precisa ser feito mais”, começando com uma nova campanha na França sobre o perigo do abuso induzido por drogas e verbas para as vítimas de violência masculina. A própria Pelicot afirmou no tribunal: “Estou me expressando aqui não com raiva ou ódio, mas com a vontade de que a sociedade mude”. Será possível?
De acordo com uma pesquisa do Ifop feita em outubro na França, 80% dos franceses ouviram falar do julgamento e quase 75% acreditam que ele demonstra “a permanência e a banalização da violência sexual em nossa sociedade”. No sistema legal francês, o estupro é atualmente definido como “penetração sexual, cometida contra outra pessoa por violência, constrangimento, ameaça ou surpresa”. O consentimento poderá ser incluído agora. Pode-se, no entanto, obter consentimento de uma mulher que é controlada à força e aterrorizada demais para recusar. Não é a melhor lição aprendida. Os desafios para se obter justiça para as mulheres estupradas e abusadas sexualmente, quanto mais a prevenção de ataques, são muito mais complexos e profundamente enraizados.
Dominique Pelicot, que também tirou fotos ilícitas de sua filha e de duas noras, ferindo horrivelmente sua família, recebeu uma sentença de 20 anos. Apenas 14 dos réus, com idades entre 26 e 74 anos, em julgamento com o senhor Pelicot se declararam culpados. Redouane El Fahiri, 55 anos, uma enfermeira casada, disse ao Sunday Times: “Gisèle Pelicot não é a única vítima; eu também sou”. Os homens poderão receber sentenças de até 18 anos.
“Estou me expressando aqui com a vontade de que a sociedade mude”, disse a francesa
Espera-se uma punição pesada porque Gisèle Pelicot é a vítima perfeita. Os advogados de defesa tentaram as táticas habituais de minar suas evidências, mas falharam, ironicamente, em parte auxiliados pelos próprios vídeos de Dominique. Gisèle não era promíscua. Ela só tinha dormido com dois homens conscientemente em sua vida. Seu comportamento não precipitou os ataques – ela estava entorpecida. Ela não mentiu para obter vingança – os vídeos diziam o contrário. Ela não bebe. É uma septuagenária que se veste recatadamente. Seu consentimento nunca foi um problema. Ela tinha sido emudecida pelas drogas.
Mas o que dizer dos casos de estupro em que é a credibilidade, o caráter e a vestimenta da vítima que estão em julgamento, não os atos do acusado? Nikita Hand acaba de ganhar um processo civil em Dublin, na Irlanda, contra o lutador de artes marciais Conor McGregor, que a estuprou “com base no equilíbrio de probabilidades”. Mais de 200 mil libras, 1,57 milhão de reais, foram concedidos como indenização. Um caso criminal exigiria que a acusação fosse provada “além de qualquer dúvida razoável”. O diretor do Ministério Público decidiu não processar. Hand disse que estava “muito bêbada” no momento do ataque.
A notícia do caso civil bem-sucedido, de acordo com a Rape Crisis Northern Ireland (Crise de Estupro na Irlanda do Norte), resultou em um aumento de 150% nas ligações para números de ajuda contra estupro. Mulheres que corajosamente se recusam a permitir que mitos de estupro roubem seu direito a justiça são importantes, mas há necessidade de uma mudança radical no sistema de justiça criminal como um todo – e que mais homens contestem seus companheiros homens. O estupro não é um butim masculino. É um dos piores crimes.
A Rape Crisis diz que, de julho de 2023 a junho deste ano, 69.184 estupros foram relatados na Inglaterra e no País de Gales, mas somente 2,7% deles levaram a acusações. Menos de um em cada seis estupros é relatado à polícia. Qual é o ponto? Estupro e agressão sexual são os crimes padrão-ouro para os perpetradores, pois há pouca represália.
Pelicot foi questionada no tribunal por que não mudou de nome. “Tenho netos chamados Pelicot”, ela respondeu. “Quero que eles tenham orgulho.” Orgulho da avó, com certeza. Em contraste, na Romênia, Andrew Tate, confrontado por acusações de tráfico e estupro, ofereceu seu apoio de ódio às mulheres a Conor McGregor. “É literalmente impossível ser um homem no mundo ocidental”, reclama. Que assim fosse. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mirem-se no exemplo’
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