Eliara Santana

Jornalista, doutora em Estudos Linguísticos e pesquisadora do Observatório das Eleições.

Opinião

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Arma secreta

Como o ecossistema de desinformação esteve no centro da tentativa de golpe

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Um, dois, feijão com arroz. Os cabeças de papel estavam prontos para atender o chamado dos salvadores da pátria – Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil
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Ao apagar das luzes de novembro, o Brasil, estarrecido, viu chegar às manchetes os detalhes de um plano golpista que planejava um ataque violento ao Estado Democrático de Direito. O plano, cujo objetivo era impedir o respeito ao resultado das eleições de 2022, vencidas por Lula, e garantir a manutenção de Jair Bolsonaro no poder. Todas essas revelações vieram à tona a partir de uma investigação extremamente detalhada tocada há quase dois anos pela Polícia Federal. Em resumo, parte da alta cúpula militar, com a anuência do Planalto e de alguns outros setores, queria dar um golpe, silenciando a oposição, jornalistas, e garantindo a manutenção do poder que se instalou no País­ em 2019. Para isso, além de mirar Alexandre de Moraes, previa-se o assassinato do presidente Lula e do vice, Geraldo Alckmin. Também estavam computadas e ordenadas ações posteriores, utilizando a força, caso houvesse reação.

Nada disso é novidade, uma vez que a mídia deu ampla cobertura ao relatório da PF. Portanto, o que eu gostaria de discutir é a ação específica de um dos núcleos dessa arquitetura golpista militar de extrema-direita identificados pela PF – e aqui uso toda essa adjetivação porque me parece muito suave dizer apenas “trama golpista”. Aquela orquestração com previsão de atacar violentamente o Estado Democrático de Direito foi tudo, menos uma simples “trama”. Como sabemos, as palavras importam, e muito.

Mas, antes de abordar o papel desse núcleo no golpe, vou relembrar aqui o conceito de ecossistema brasileiro de desinformação, que deve ser compreendido como um sistema complexo de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado (ressignificado, com novos sentidos) que envolve vários atores e várias etapas: produção, circulação, consumo, reprodução, criação de agendas, monitoramento de atores e narrativas.

O problema da desinformação, aqui entre nós, não é “apenas” a disseminação em larga escala de boatos ou notícias falsas – estamos diante de um problema sistêmico de ressignificação da realidade que interpela os cidadãos com muita propriedade. Esse ecossistema tem dinâmicas poderosas e eficientes de elaboração, produção e disseminação de conteú­do intencionalmente falso e danoso, com a recriação do dado real com um viés propositadamente mentiroso que institui realidades paralelas.

Portanto, precisamos tomar a desinformação em sua dimensão ampla, estrategicamente elaborada e organizada, que envolve diversos escopos e atores, sendo parte muito significativa, vital, de uma estratégia política da extrema-direita. Estratégia esta que encontrou um terreno muito fértil no Brasil, a partir de várias configurações, com aporte financeiro do Poder Público e da iniciativa privada e com pautas muito bem definidas.

Pois bem, feito o aparte, vamos ao que disse o relatório da PF sobre o Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral. Forma de atuação: produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto à lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o Golpe de Estado, conforme exposto no tópico “Das Medidas para Desacreditar o Processo Eleitoral”, constante na presente representação.

Instrumentalizar o delírio, o nonsense, a crença no absurdo, não é uma ação simples

Dois pontos estratégicos destacam-se nessa descrição: “estimular seguidores” e “criar um ambiente propício para o golpe”. Não são ordenações verbais apenas, são construções de discurso que têm uma dimensão de ação e condução estratégica a partir da instrumentalização do delírio. Não é pouca coisa manter milhares de indivíduos, por todo o País, em frente a quartéis, orando, cantando, se abraçando, todos mobilizados por meses e meses por um propósito político. O único equivalente no campo progressista a essa mobilização, que eu vislumbro, é a Vigília Lula Livre, extremamente potente, mas circunscrita a um local, Curitiba (se houver outros, por favor, podem mandar reclamações).

A instrumentalização do delírio foi efetiva, bem projetada. Os agentes envolvidos nesse núcleo, com aporte de outros atores, evidentemente, construíram discursivamente o convencimento dos eleitores em relação à fraude na eleição, para garantir mobilização, e uma narrativa eficaz de justificativa, a partir do caos gerado, para a “necessidade” de um golpe para controlar o poder e levar o ­País de “volta aos trilhos”. Instrumentalizar o delírio, o nonsense, a crença no absurdo, não é uma ação simples. Não é fácil plantar a crença em uma fatia muito grande da população – com acesso à educação formal, inclusive – de que comunistas loucos vão invadir o País, de que ETs podem socorrer o Brasil, que as urnas são fraudadas para o candidato comunista.

Para além de provocar risos ou reações singelas do tipo “como acreditam?”, pensar sobre essa fina construção como uma estratégia discursiva, política, comunicativa bem desenhada e calculada é essencial para entender o ontem, o hoje e projetar o futuro.

Entre outros detalhes, o relatório da Polícia Federal mostra que essa articulação pela desinformação para viabilizar o golpe estava desenhada e na agenda do então presidente ao menos desde julho de 2022, quando Jair Bolsonaro chamou ao seu gabinete no Planalto aliados generais e ministros para disseminar mentiras sobre urnas e eleições. E assim foi feito, com todas as ações posteriores e todo o comportamento midiático do então presidente sendo cuidadosamente calculados, elaborados, pensados. Um ecossistema em pleno funcionamento.

A desinformação, reitero, nunca foi detalhe, ou enfeite, na arquitetura da extrema-direita bolsonarista. Tampouco é pensada somente em período eleitoral. A desinformação estava no centro do golpe e continua a ser uma estratégia fundamental de ação e de planejamento futuro. Não nos deixemos levar pela arrogância ingênua de minimizar esses atores e seus feitos estratégicos. •


*Jornalista, doutora em Estudos Linguísticos e pesquisadora do Observatório das Eleições.

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arma secreta’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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