Mundo
Juntar os cacos
Por enquanto, os democratas lavam roupa suja em público. O partido está pronto para enfrentar tempos bicudos?


Chegou a hora da autocrítica do Partido Democrata. A derrota inconteste na Casa Branca, na Câmara e no Senado exige da agremiação que se propôs a defender as instituições norte-americanas uma nova postura diante do maior desafio de sua existência. Para muitos, a fragmentação da legenda reflete a situação do próprio país, dividido em duas metades que se odeiam. A vitória de Donald Trump agiliza um processo iniciado bem antes. A crescente insatisfação da base eleitoral não é recente e soma-se à ascensão do populismo de direita e às profundas divisões internas entre progressistas e centristas. O combo reforça a pressão para redefinir a estratégia para as eleições futuras sem abandonar as bandeiras históricas.
Por enquanto, lava-se roupa suja. Um dia após a derrota nas urnas, um dos mais respeitados líderes da esquerda progressista nos Estados Unidos, o senador independente Bernie Sanders, culpou a própria legenda pela derrocada. “Não deveria ser nenhuma grande surpresa que um partido que abandonou a classe trabalhadora descobrisse que a classe trabalhadora o abandonou. Os democratas perderam esta eleição porque ignoraram a raiva justificada da classe trabalhadora americana e se tornaram defensores de uma economia e de um sistema político manipulados”, anotou em um comunicado oficial publicado em suas redes sociais. Três dias depois, Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara, refutou as acusações de Sanders. Durante entrevista a um podcast, classificou o governo de Joe Biden como um dos mais progressistas na política doméstica. “Sob o presidente Biden, você vê o pacote de resgate, dinheiro nos bolsos dos cidadãos, as injeções no braço, crianças na escola com segurança, trabalhadores de volta ao trabalho. O que Trump fez quando era presidente? Um projeto de lei que concedeu um corte de impostos para os mais ricos da América.” Pelosi não mentiu, mas Sanders também não está errado. E, embora a ex-presidente da Câmara seja um dos nomes de maior prestígio no partido, não foram poucos os que fizeram coro com o veterano senador.
Crítica. O partido foi abandonado pelos trabalhadores, diz Sanders – Imagem: Gage Skidmore
O colega Chris Murphy, que começou a carreira política como um democrata moderado, reconheceu a assertividade de Sanders. “Não ouvimos o suficiente. Dizemos aos eleitores o que é bom para eles. E quando progressistas como Bernie atacam agressivamente as elites que reprimem as pessoas, eles são rejeitados como populistas perigosos. Por quê? Talvez porque o verdadeiro populismo econômico seja ruim para a nossa base de alta renda”, escreveu em uma extensa defesa em um tópico na rede social X no dia 10 de novembro. “Essas são coisas difíceis para a esquerda. Uma ruptura firme com o neoliberalismo. Ouça os pobres e os rurais, homens em crise. Não decida por eles. Arranje brigas. Abrace o populismo. Construa uma grande tenda. Seja menos crítico. Mas estamos além de pequenas correções.”
Matthew Duss, vice-presidente-executivo do Center for International Policy e conselheiro de política externa de Sanders entre 2017 e 2022, diz mais. Em entrevista a CartaCapital, Duss destaca a incapacidade dos democratas de se apresentarem de forma convincente como um partido que age em nome dos trabalhadores. “Joe Biden e então Kamala Harris essencialmente se apresentaram como defensores de instituições em que muitos, ou mesmo a maioria dos americanos, perderam a fé. Donald Trump e o Partido Republicano, mais particularmente Trump, pois ele redefiniu o partido em torno de si, apresentaram-se como críticos das instituições, que iriam remodelar e reformar. E essa foi uma mensagem vencedora.”
Segundo o analista, o Partido Democrata precisa refinar sua mensagem e mostrar ser uma (boa) mercadoria. Uma legenda comprometida com a classe trabalhadora, não apenas em termos das políticas e da legislação que vai oferecer, mas que tenha mensageiros e líderes que possam falar de forma convincente e autêntica como integrantes ou em nome da classe trabalhadora. “E esse é o problema. Os democratas são vistos em grande parte como o partido dos bem-educados e ricos, e então muitos eleitores da classe trabalhadora os veem com grande suspeita. Eles não sentem que podem relacionar-se com o Partido Democrata.” Por isso, afirma Duss, Sanders continua a ser o nome com maior autoridade para representar a agremiação. “Há evidências de que ele poderia ter vencido a eleição em 2016 ou 2020 e, embora existam muitos líderes jovens e inteligentes no partido, neste momento não há ninguém que eu acredite que possa falar por todo esse movimento da maneira que o senador Sanders pode.”
Órfãos. Os eleitores democratas esperam uma nova mensagem, lideranças jovens e um partido mais crítico em relação ao sistema – Imagem: Kit Karzen/Harris For Presidente 2024
O professor da Universidade de Boston Thomas Whalen, Ph.D. em História Americana e com expertise na história do Partido Democrata, ressalta que os representantes da legenda precisam voltar às raízes. “Embora a redução da inflação sob Biden tenha feito tanto pelos trabalhadores e pelos norte-americanos comuns, sua operação de mensagens foi simplesmente terrível. Os democratas não sabem como falar com os comuns na rua, aqueles que estão basicamente contando seus centavos e tentando descobrir como enviar seus filhos para a faculdade e pagar o aluguel mensal. Em vez disso, eles recebem um tipo de palestra acadêmica. Esses candidatos concorrem a cargos públicos e estão presos a políticas de identidade e questões culturais quando realmente deveriam abordar o que os eleitores estão mais interessados. O Partido Democrata não está dando aos americanos o que eles querem.”
Durante uma parte significativa da campanha, lembra Whalen, Harris dava poucas entrevistas a veículos digitais, enquanto Trump aparecia em todos esses podcasts de mídia social. “Veja bem, os meus alunos não obtêm suas notícias nos jornais ou sites de notícias, eles se informam no TikTok ou em outras mídias sociais, mas os democratas estão executando suas campanhas como se estivessem em 1992 ou 2008, eles não acompanharam os tempos. Em 1960, John Kennedy foi capaz de superar Richard Nixon porque ele entendia melhor a televisão, porque a mídia havia mudado. Kennedy foi capaz de descobrir isso antes dos outros. Por isso é fundamental que os democratas comecem a trazer a bordo aqueles que entendam o século XXI e como a mídia funciona, se eles quiserem ter alguma chance no futuro, ou seja, se tivermos um futuro democrático.”
Whalen: o candidato vencedor deve ser branco, jovem e duro no tema da migração
Não é difícil, acrescenta o professor, traçar o perfil ideal que seria aceito pelo eleitor norte-americano: deve ser um homem branco, relativamente moderado, mas alguém mais da esquerda para o centro, algo entre Barack Obama e Bernie Sanders. Ele também deve ser mais jovem, eu diria na casa dos 50, alguém que ganhou um cargo antes e que tenha um histórico extremamente bom de derrotar republicanos. Essa liderança deve ser ativa nas redes sociais, em podcasts. Ele precisa ser mais duro quando o assunto for a fronteira, não exatamente como os republicanos, mas basicamente ser mais severo com a imigração do que eles têm sido.”
Pergunto a Whalen por que ele enfatiza sem hesitar que o novo líder democrata deve ser um homem branco. Harris ou outra mulher estariam, então, fora do páreo desde já? “Os americanos dirão ‘ah! Não, não somos antifeministas’ ou ‘não somos contra os negros’, mas os registros mostram o contrário. Este é um país muito racista, francamente, o que torna o feito de Obama ainda mais incrível.”
Exceção. A vitória de Barack Obama foi um milagre em um país marcado pelo racismo – Imagem: Acervo/Casa Branca Oficial
Embora os próximos anos não sejam animadores, o professor afirma que talvez seja uma boa oportunidade para os democratas se reerguerem e reconquistarem o eleitor. “Os republicanos, com todo esse projeto 2025, pretendem reduzir a Previdência Social, o Medicare e o Medicaid, programas que ajudam os americanos comuns. Isso pode irritar muitas pessoas, principalmente os eleitores mais velhos, que são os americanos que realmente votam. O fato é que a democracia está em perigo agora neste país e, honestamente, não tenho certeza se seremos capazes de sobreviver a isso.”
Duss sugere aos democratas e aos progressistas de modo geral um mergulho na reorganização interna, no estudo das experiências vencedoras fora dos Estados Unidos e na busca de alianças internacionais. “A direita tem sido muito mais agressiva na construção desses relacionamentos. A esquerda precisa conversar mais, precisa envolver-se mais com seus aliados em outros países, outras democracias ao redor do mundo e outros grupos da sociedade civil que trabalham em situações antidemocráticas.” Sobre o futuro da legenda? “Bom, vai depender principalmente do que os democratas vão decidir fazer. Depende de quais lições conseguirão aprender com a eleição que acabaram de perder. Então, acho que as próximas semanas serão muito, muito importantes para nos dizer se os democratas vão, mais uma vez, evitar um acerto de contas real, ou se eles vão realmente aprender as lições e se comprometer a construir um movimento genuíno da classe trabalhadora.” •
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Juntar os cacos’
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