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O que pensa o fluxo

Pesquisa inédita descreve o perfil dos usuários e a percepção sobre serviços públicos na região

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Maquiagem. As operações de dispersão dos usuários encobrem a falta de uma solução. Boa parte dos frequentadores da Cracolândia se sente em casa na região – Imagem: Luca Meola
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O principal espaço de consumo de drogas a céu aberto do País, e um dos maiores do mundo, a Cracolândia virou um dos assuntos mais complexos de São Paulo, por englobar não só o uso desenfreado de substâncias químicas, mas também pela alta vulnerabilidade social dos frequentadores. Sobra preconceito, falta entendimento. Cientes das distorções, pesquisadores da USP e da Fundação Getulio Vargas colheram a impressão dos usuários sobre a qualidade dos serviços públicos oferecidos na região. Para obter esse panorama, os autores mergulharam no território ao longo do segundo semestre de 2022, durante a Operação Caronte, cujo objetivo era desocupar a Praça Princesa Isabel, no Centro. Os dados são “um recorte da própria cidade de São Paulo”, avalia Amanda Gabriela Amparo, pesquisadora do Coccix – Estudos (in)disciplinares do corpo e do território, ligado à Antropologia Social da USP.

A maior parte dos usuários, captou a pesquisa, está no Centro não só pelo fácil acesso às drogas, mas também pelas oportunidades oferecidas. “Aqueles com trabalhos informais, desempregados, vêm parar na região porque aqui tem uma gama imensa de possibilidades. Muitos usuários partem desse mesmo princípio, aqui eles conseguem sobreviver fazendo trabalhos e bicos distintos. É um mito que eles não trabalham”, diz a pesquisadora. Segundo o estudo, 29% dos frequentadores do fluxo trabalham regularmente com reciclagem, outros 25% com venda de objetos e serviços variados (roupas, calçados, perfumes, cigarros, cachimbos, artesanatos, descarga de caminhões, limpeza de para-brisas e conserto de caixas de som), 15% fazem “corres” e perto de 5% vivem da prostituição.

A Operação Caronte alcançou a meta de “limpar” a praça, na área do futuro complexo que sediará o governo estadual. Não resolveu nem minimizou, porém, o problema. Ao contrário. “A política de circulação forçada dos usuários deu origem a outros 16 pontos de consumo de drogas em várias partes do Centro expandido”, descreve Giordano Magri, do Centro de Estudos da Metrópole, da USP e do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV. Se antes os usuários se concentravam em apenas um ponto, e isso facilitava o trabalho dos agentes de saúde que fazem abordagens in loco, hoje, apenas com uma volta de carro do Centro à Avenida Paulista, é possível identificar diversas aglomerações de usuários. O crack espalhou-se e chegou até em regiões ditas nobres, como a dos Jardins.

Grande parte dos frequentadores encontra no Centro modos de subsistência

Os autores iniciaram a pesquisa a fim de identificar para onde o contingente removido da praça havia se deslocado. Além de obter a percepção dos usurários sobre “os dois braços do Estado” mais presentes no território, “o que cuida e o que oprime”, diz Magri. “O processo de coleta foi muito complexo, porque várias entrevistas foram interrompidas por operações violentas. Isso nos permitiu observar de perto como é a atuação das forças policiais”, conta Amparo. As circulações forçadas, no início, aconteciam até 15 vezes por dia. O processo consiste em obrigar um grande grupo a se locomover de um ponto a outro. É comum o uso de balas de borracha, gás de pimenta, cassetetes e prisões arbitrárias. “É uma tentativa de desterritorializar aqueles que têm raízes nesse local de uma forma muito perversa. Os usuários ficaram exauridos nesse processo”, acrescenta a pesquisa.

Durante as operações policiais, violência excessiva é comum, denunciaram os entrevistados. Eles avaliam que as forças policiais mais violentas são a Guarda Municipal Metropolitana e a Inspetoria Regional de Operações Especiais (Iope). Citam ainda a Rota, famosa pela brutalidade e ineficiência. Os usuários, descreve Amparo, relataram episódios de violência policial “de forma muito lúcida e politizada”. “Muitos associam esse processo ao interesse imobiliário na região e a um projeto político.”

Um dos entrevistados, Vanilson Santos Conceição, de 38 anos, lembra traumatizado a abordagem de policiais da Rota na Praça Princesa Isabel. “Diziam que eu tinha ligação com ‘Os Irmãos’ (como é chamada a facção criminosa PCC), me levaram para um hotel, me espancaram muito, meteram um prego no meu ouvido, e ainda tomei dez tiros”, conta, antes de levantar a camiseta e mostrar as cicatrizes. Vanilson viveu na praça por dois anos e seis meses. Recorda com nostalgia da barraca na qual podia dormir, guardar seus pertences e cozinhar para os amigos. Descreve os perrengues da vida de nômade, sem um lugar fixo, que só serve para “deixar todo mundo mais revoltado”. Afirma estar há um ano sem usar crack, graças ao acompanhamento psicológico que recebe do projeto Teto Trampo Tratamento, coordenado pelo psiquiatra Flávio ­Falcone, o “palhaço” da Cracolândia. “Ajuda psicológica e apoio da minha família foi o que me deu força.”

Fracasso. As comunidades terapêuticas não entregam o que prometem, o abandono do vício. As recaídas são frequentes – Imagem: Luca Meola

Cozinheiro desde os 12 anos, quando a mãe delegava a ele a tarefa de cuidar dos irmãos mais novos, em Salvador, na Bahia, Vanilson Conceição fez da obrigação uma profissão. Gosta de cozinhar para “o pessoal do projeto” e nos dias livres tem conseguido bicos em restaurantes da região. “O trabalho pode ser pequeno, mas torna a gente grande. Agora eu acredito que posso reconstruir minha família e ser alguém novamente.” A proximidade com a família, inclusive, é algo comum, 50% dos usuá­rios mantêm esses laços.

Dois anos depois, as circulações forçadas ainda acontecem duas ou três vezes por dia. A maior aglomeração concentra-se na Rua dos Protestantes. De lá, os usuários são empurrados para a Avenida Duque de Caxias, em frente à Sala São Paulo, a seis quadras de distância. Depois da limpeza, são obrigados a voltar. “Percebemos que ao longo desse período as operações policiais estão mais silenciosas”, avalia Magri. “Mas a presença ostensiva e violenta da polícia na região aumentou muito.” Amparo complementa: “Durante essas ações, é comum a polícia tomar os documentos e os poucos pertences, como remédios, algumas roupas e produtos de higiene, ou ferramentas de trabalho. É uma política perversa e não à toa muitos usuários enxergam o Estado como ‘ladrão’, porque, além de não dar oportunidades, retira o pouco que eles têm”.

Ao mesmo tempo, sugere o especialista, as ofertas de cuidado tiveram seu caráter profundamente alterado nos últimos dois anos, e o foco passou a ser as internações terapêuticas, em geral forçadas, do que na redução de danos e acolhimento.

Do total de usuários, 80% são negros e o mesmo porcentual é de homens

Quase 70% dos usuários, diz a pesquisa, estiveram internados em clínicas de reabilitação ao menos uma vez. Do total, houve quem passou por tratamentos mais de 20 vezes. Os principais motivos para o fim da internação identificados foram os seguintes: fim do prazo de internação sem uma porta de saída, abstinência, falta de uma vida social ou saudade da família ou da vida na rua e as más condições da internação, especialmente diante da falta de liberdade, da medicalização e da similaridade com a prisão. Para Amparo, isso demonstra que algo precisa ser investigado no tratamento, não nos dependentes. “Se topam se tratar, e ao fim do processo não obtiveram o resultado prometido, isso significa que o problema não está nos indivíduos.”

A oferta de cuidados foi reduzida, alertam os pesquisadores. Um dos principais serviços de referência dos usuários, o Cratod, foi fechado, e no lugar foi instalado o HUB de Cuidados em Crack e outras Drogas. Um ex-funcionário da unidade, o psicólogo Diego Rennó, denuncia que, desde então, o clima de trabalho tornou-se hostil e servidores que não concordam com a nova política de tratamento, focada em internações, têm sido alvo de perseguições, o que resultou em mais de 35 demissões “de profissionais comprometidos” só neste ano. De acordo com Rennó, o atual Serviço de Cuidados Prolongados, administrado pela Associação Filantrópica Nova Esperança, uma terceirizada responsável pelo atendimento, realiza abordagens no mínimo suspeitas. “Eles fazem inúmeras ofertas, desde alimentação, moradia e banho, que o paciente aceita de forma voluntária. Mas, quando é transferido para o internamento, ele vai como involuntário. Assim, a sua permanência no hospital psiquiátrico não parte apenas do desejo dele de ficar ou não, mas de uma conduta médica.”

A lei da botina. Guardas movem o “rebanho” de um lado para o outro à base da força – Imagem: Victor Moriyama/Getty Images/AFP

De acordo com o estudo, 80% dos usuários são homens, 80% são negros, a maioria está na região pelo uso de ­crack, mas há outras informações: 38% deles dizem viver no território por vontade própria, independentemente do uso, 22% afirmam que o Centro “é sua casa”, e outros 16% “se sentem bem” ali.

A Cracolândia, acredita Magri, apesar de sua complexidade, “é um espaço de acolhimento dos excluídos de seus núcleos”. O fechamento de hotéis, nos quais são oferecidas diárias em conta, e dos centros de reciclagem, fontes de renda, configura uma política de “sufocamento”. As medidas acabam “com todas as estratégias de sobrevivência”.

Em nota, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana informa que a formação e atuação da Guarda Civil Metropolitana são pautadas pela Lei 13.022 e princípios que garantem um atendimento digno e humanitário. A reportagem não obteve resposta dos demais órgãos públicos responsáveis por essas políticas. •

Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que pensa o fluxo’

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