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Crédito ou débito?

A regulação do mercado de carbono protege o agronegócio, desconsidera a ciência e tem digitais de lobistas

Crédito ou débito?
Crédito ou débito?
Foto: Jonas Pereira/Agência Pereira
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A aprovação, pelo Congresso, da lei que cria o mercado regulado de carbono no Brasil é um passo adiante na transição para uma economia verde, mas contém falhas imperdoáveis, como excluir o agronegócio, deixar ambiguidades em relação ao enquadramento da indústria de agrotóxicos e outros insumos agropecuários e desconsiderar a ciência, ao não distinguir a origem do gás das emissões. A legislação encaminhada à sanção pelo presidente Lula tem ainda as digitais dos lobistas do sistema financeiro, ao deixar a porta aberta para a fungibilidade, ou troca, dos certificados de redução de emissões por ativos financeiros não definidos, inclusive papéis emitidos pelas próprias empresas poluidoras. No conjunto, essas deturpações fragilizam o alcance das metas de descarbonização pelo mecanismo de cap-and-trade, que junta o estabelecimento de metas à negociação de certificados.

O projeto institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, impõe limites aos grandes poluidores e cria um mecanismo de compensações entre as empresas sujeitas à regulação, atribuindo um preço ao carbono. Com isso, estimula investimentos na descarbonização da economia. Adiar a aprovação, dizem desenvolvedores de projetos e outros interessados, como as instituições financeiras, atrasaria os investimentos necessários. As expectativas de “despiorar” o projeto residem agora na sua regulamentação, na parte infralegal e de implementação.

No sistema de comércio de emissões, as empresas têm permissão de emitir certa quantidade de gases poluentes e quem ficar abaixo da sua cota pode vender o saldo para aquelas que as excederem. O projeto prevê a redução dos limites ao longo do tempo e a venda dos créditos emitidos pelas empresas menos poluidoras àquelas que poluem muito. Em tese, a compressão gradual dos limites deveria servir de estímulo para as empresas investirem em tecnologias de descarbonização, em vez de adotarem a solução mais fácil, de comprar créditos para compensar o estouro recorrente das metas. “A lei trata de um cap-and-trade que vai acontecer daqui a cinco anos. Alguns custos vão ser rapidamente percebidos pelas empresas. Aquelas que ainda não fazem o controle vão começar a monitorar as emissões. Isso é uma coisa que acontece tarde no Brasil. A gente precisa saber quanto as empresas emitem”, afirma Gustavo ­Luedemann, pesquisador do Ipea e integrante da Rede Clima e do Climate ­Crisis Advisory Group, conjunto de especialistas em ciência climática de dez países.

Ação. A Justiça livrou a Biopetro da obrigação de negociar na Bolsa de Valores – Imagem: Redes Sociais/Bio Petro

Os nossos inventários de emissões, prossegue Luedemann, seja o oficial, feito pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, seja o do Observatório do Clima, usam dados agregados da indústria em parte autodeclaratórios. “Não se sabe quanto cada indústria emite. O próprio setor mantém os dados de emissões. Não existe uma base oficial de quanto cada grande emissor gera. A lei é uma grande contribuição, no sentido do monitoramento dessas emissões. Não em todos os setores, pois logo no início diz que a atividade de agropecuária não será regulada. Mas o monitoramento é necessário, seja qual for a política a ser adotada.” A necessidade de controlar as emissões é óbvia, pois o tamanho dos danos das mudanças climáticas é enorme, como mostram as catástrofes do Rio Grande do Sul e da Amazônia.

Quanto ao setor de produção de insumos e matérias-primas agropecuárias, não fica claro se ficará sujeito ao controle. No caso de fertilizante nitrogenado, trata-se da indústria química. Por uma questão de isonomia, não deveria ter tratamento excepcional. Os demais setores poderiam considerar que o direito constitucional está sendo ferido, pois têm obrigações e esse segmento, não. Há uma ambiguidade no texto que talvez só seja resolvida no Judiciário, aponta o especialista.

O principal problema da lei é não discriminar a origem do carbono das emissões. Há dois ciclos muito distintos, um longo e outro curto. O curto é o que existia naturalmente antes da Revolução Industrial. O problema das mudanças climáticas decorre principalmente de se ter quebrado o ciclo longo. “Quando acessamos o carbono fóssil, que existia antes do surgimento do ser humano, e passamos a emiti-lo na forma de CO2 e de metano, enriquecemos o ciclo curto. Com isso, colocamos mais carbono no sistema biosfera, atmosfera e ocea­nos, um carbono que não existia, alienígena. E não temos como nos livrar desse carbono, a não ser com soluções caríssimas”, dispara Luedemann. O que esse projeto de lei faz, acrescenta, é igualar uma coisa à outra, ao admitir a compra de créditos florestais para compensar emissões da indústria química e outras coisas do tipo.

As expectativas para “despiorar” o projeto repousam na regulamentação

Trata-se de um grande problema, pouco debatido, e que se manifesta, inclusive, na linguagem utilizada. Quando define os tipos de documentos transacionáveis, sublinha o técnico do Ipea, a nova lei inclui o certificado de redução ou remoção certificada de emissões. A primeira menção é a um ativo fungível. “Fungível ao quê, a um crédito de descarbonização CBIO, ou aos papéis que uma indústria coloca no mercado quando abre seu capital? Essa palavra é muito utilizada pelos lobistas que querem que se possa considerar como se estivessem neutralizando uma emissão proveniente de queima de combustível fóssil, com um projeto de reflorestamento, ou mesmo de manter a floresta em pé, com métodos muito questionáveis, inclusive utilizados no mercado voluntário de carbono”, aponta Luedermann. “Eu chamaria, sem medo, de greenwashing a iniciativa da própria Petrobras de declarar que tem uma gasolina de carbono neutro, como se isso fosse possível”, condena o especialista. Greenwashing significa “maquiagem verde” ou “lavagem verde”, quando empresas criam uma falsa aparência de sustentabilidade que leva o consumidor a acreditar que ao comprar um produto “ecológico” contribui para a sustentabilidade ambiental e animal.

A luta dos lobistas é pela fungibilidade dos créditos. O Protocolo de Kyoto reconhecia essa diferença da origem do carbono e projetos florestais recebiam certificados de redução de emissões temporários. Com isso, o preço dos certificados de redução de emissão de CO2 e equivalentes ficou muito abaixo daqueles da redução definitiva. Havia uma briga do setor florestal, e mesmo do fóssil, que queria que as compensações baratas pudessem justificar as suas obrigações de redução permanente, de modo a  ficarem equivalentes. Eles chamam isso de fungibilidade, entre o crédito temporário do Protocolo de Kyoto e o crédito permanente. “Os lobistas parecem ter tido a preocupação de colocar essa linguagem na lei, que na verdade só denuncia de onde vem essa confusão entre o ciclo de carbono curto e o ciclo de carbono longo”, ressalta o especialista.

Um requisito importante é reconhecer a ciência e a nova lei não o faz, ao não diferenciar a origem do carbono. A Europa não teve grandes problemas com isso, pois não há um volume de emissões com desmatamento tão expressivo quanto o do Brasil. Grande parte das emissões é no setor de energia e há tetos setoriais, inclusive com limites de alcance das metas por meio da compra de permissões. Não é completamente fungível, diz o técnico do Ipea, pois estabelece a porcentagem para o uso desse artifício.

Cerco. Empresas poluentes estão pressionadas no mundo inteiro. Ou se adaptam ou ficam sem crédito – Imagem: iStockphoto e Redes sociais

Na discussão do projeto no Congresso, choveram emendas sobre o mercado voluntário, superdimensionado em relação ao regulado, muito mais importante. O mercado voluntário de créditos de carbono surgiu nos EUA, quando os republicanos barraram no Congresso a participação no Protocolo de Kyoto, de 1997, primeiro documento global que estabelecia metas de redução de emissões para países. Parte da indústria norte-americana decidiu criar seus próprios padrões de emissões de certificados, na década de 2000. “Sou crítico do mercado voluntário porque ele nasce de uma forma errada, de um país fugindo às suas responsabilidades em relação às próprias emissões. Esses mercados voluntários em regra sempre aceitaram esses créditos florestais para compensar as suas emissões. Isso gera uma fragilidade muito maior do mercado voluntário. Não tem os pesos e contrapesos do Protocolo de Kyoto. Nunca conseguiu atingir o que se propunha, de fazer algo igual ao Protocolo de Kyoto fora desse pacto”, ressalta Luedermann.

“Eu tenho uma posição bastante crítica aos mercados voluntários. Vários projetos, principalmente na África, mentiram muito sobre a contabilização de remoções de emissões. As coisas têm melhorado, mas ainda é uma fonte de denúncias de fraude. Isso precisa acabar, caso contrário o mercado voluntário não terá a credibilidade necessária para continuar a existir. Outra coisa que não pode continuar é a indiferenciação entre carbono fóssil e natural.”

Uma evidência local da altíssima volatilidade desse mercado é a decisão do TRF–1 que desobrigou a distribuidora de combustíveis Biopetro, de Ribeirão Preto (SP), de comprar Créditos de Descarbonização na Bolsa e autorizou a realização de depósitos judiciais que serão reconhecidos nas suas metas de descarbonização de 2022 e 2023. A medida protege a empresa de oscilações médias de até 400%.

Na COP–29, em Baku, no Azerbaijão, o governador do Pará, Helder Barbalho, anunciou um projeto de concessão florestal remunerada com créditos de carbono gerados durante o processo. ­Luedermann questiona: “Ele considera que o crédito florestal compensa a queima de combustível fóssil, nessa comparação. Mas é isso mesmo que fazem, consideram o ‘crédito de carbono’ florestal uma compensação pela queima de combustíveis fósseis, o que não é verdade. A queima de combustíveis fósseis enriquece o sistema biosfera–atmosfera–oceanos com carbono que ou acidificará os oceanos, ou causará o efeito estufa na atmosfera, ou ficará, no lugar de outra molécula de carbono, na vegetação, nos animais, nos fungos ou no carbono do solo”. •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crédito ou débito?’

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