Política
A via do diálogo
O fim da jornada 6×1 é um tema mais político do que jurídico, diz Aloysio Corrêa da Veiga, presidente do TST


Há pouco mais de um mês Aloysio Corrêa da Veiga comanda o Tribunal Superior do Trabalho, Corte sob intenso escrutínio desde a reforma trabalhista levada a cabo pelo governo-tampão de Michel Temer. Com mais de 40 anos de experiência na Justiça, Veiga acompanha de perto o debate sobre o fim da escala 6 por 1 e defende um diálogo franco e aberto. O assunto, afirma nesta entrevista, tem caráter muito mais político do que jurídico. Na conversa, o magistrado discorre ainda sobre as mudanças no mundo do trabalho, a persistência dos casos análogos à escravidão e da exploração infantil e promete marcar sua gestão com a cultura dos precedentes e da conciliação. A seguir, os principais tópicos. A entrevista completa está disponível no canal do YouTube de CartaCapital.
6×1
É uma opção política. O que nós precisamos é de emprego, pleno emprego. A questão do 6×1 existe na legislação brasileira desde 1932 e temos a jornada de seis horas em determinadas categorias, como aquela dos bancários. Agora, estabelecer em nível geral para todos, reduzir de oito para seis horas, com a jornada de 36 horas semanais, as experiências na Europa, na França, mostram que há, naturalmente, uma polêmica muito grande. É preciso haver uma opção política nesse sentido, muito mais do que jurídica. É possível, mas para isso é necessário que haja um movimento, um aprofundamento. Uma das melhores atitudes é o diálogo, um debate amplo, audiências públicas, para saber qual é o impacto da jornada 6×1 e de sua revogação. Alguns países têm uma jornada mais reduzida por várias razões, não só para atender o tempo livre do trabalhador, mas até por questões climáticas. É preciso ampliar e abrir o diálogo para haver um debate mais profundo sobre o tema.
“É preciso um movimento, um aprofundamento da discussão”
O impacto na Justiça do Trabalho
Se a Constituição adotar a jornada de trabalho reduzida por emenda, haverá o cumprimento da norma legal. E o cumprimento da lei há de ser voluntário. Se não houver um cumprimento voluntário, o Poder Judiciário pode ser provocado para fazer valer a lei.
Saúde do trabalhador
A atividade profissional não pode comprometer a saúde do trabalhador. E as jornadas excessivas de trabalho provocam, muitas vezes, a tensão, o estresse, o burnout, consequências de uma mudança do mundo. A mudança, nesses últimos 20 anos, aconteceu numa velocidade incrível. A saúde mental da classe trabalhadora sempre foi contaminada desde a Revolução Industrial e as mudanças são muito incidentes e terminam por comprometer a própria qualidade de vida da classe trabalhadora.
Inaceitável. Trabalho análogo à escravidão, em pleno século XXI, é uma aberração – Imagem: AFT/Ministério do Trabalho
Redução por acordo coletivo
A negociação coletiva é um amadurecimento da sociedade. Mediante a negociação coletiva, as partes se empoderam para decidir aquilo que melhor vai aproximar o trabalho e a atividade produtiva. Agora, para existir negociação coletiva tem de haver manifestação da vontade igualitariamente, a força da manifestação da vontade. E essa autonomia da vontade, na classe trabalhadora, ela terá de ter uma representação do sindicato profissional de um lado e a empresa ou a categoria econômica do outro. Só assim é possível celebrar as convenções coletivas. A limitação da negociação coletiva está nos direitos indisponíveis. O artigo sétimo da Constituição traz um elenco de temas que não poderiam ser objeto de negociação, assim como também consta na Consolidação das Leis do Trabalho. Determinados temas não podem ser objeto de negociação.
Legislação desatualizada
O mundo do trabalho mudou, aquele contrato formal de trabalho que conhecemos, da carteira assinada do século passado, não é mais o mesmo. Hoje, qualquer um pode ser pessoa jurídica unipessoal, prestar serviço normalmente sem ser empregado. Nada impede também que ele possa ser empregado. Mas a opção, a autonomia da vontade, dará a ele o modo de como desenvolverá a sua atividade. A terceirização é diferente da pejotização. A terceirização pressupõe a existência de uma tríplice participação, que é uma empresa tomadora de serviços, uma empresa prestadora de serviços e o prestador de serviços. A empresa tomadora contrata outra empresa para realizar determinados serviços. Aqueles que estão lá estão prestando serviço dentro da atividade empresarial, mas não são empregados daquele tomador de serviço. Haverá, no entanto, uma responsabilidade subsidiária da empresa tomadora de serviços quando houver inadimplência da empresa prestadora.
“A negociação coletiva é um amadurecimento da sociedade”
Uberização
É preciso uma regulamentação, porque estamos diante de um sistema de direito, que é a civil law, posto e escrito com normas objetivas que vão abranger todos. Essa regulamentação tem de acompanhar a mudança do mundo do trabalho. Na ausência de uma norma legal, e se o juiz é provocado pelo conflito de interesse, ele tem de julgar, tendo ou não tendo lei. Ele não pode omitir julgamento diante da lacuna da lei. E regulamentar de que maneira? Criando condições básicas, mínimas, para o desenvolvimento do trabalho: seguro contra acidentes, Previdência Social e a desconexão. Alguns países regulamentaram dessa forma. Outros, como Portugal, alteraram a legislação no Código de Trabalho e criaram um vínculo de emprego do Uber, desde que haja uma presunção de laboralidade, segundo a lei. Outros países não regulamentaram. Mas essas questões precisam ser tratadas. O seguro é importantíssimo, pois estamos em um sistema compartilhado, em cooperação. Somos corresponsáveis pela saúde pública no Brasil. A Previdência Social se dá para amparar na doença, na impossibilidade do trabalho e, no fim da vida, para receber a aposentadoria ou a pensão. Se não houver, e como ela é contributiva, todos são responsáveis para contribuir de forma compartilhada com o tomador e o prestador de serviços. No caso da desconexão, o prestador de serviços, para ganhar mais, tem de trabalhar mais. E não é possível o motorista de Uber ficar 18 horas ligado num algoritmo para prestar serviços de transporte e poder ter um rendimento maior. Tem de haver uma desconexão, tem de haver um limite de horas de prestação de serviços. Essas questões precisam ser tratadas sem paixões. O Poder Judiciário age quando é provocado no conflito de interesse e na ausência de uma lei específica, de uma regulamentação específica. E é claro que ele vai aplicar as regras da legislação, para poder solucionar o conflito.
Trabalho decente
Temos de preservar a dignidade dos trabalhadores. Ainda constatamos situações de trabalho em condições análogas à escravidão, até mesmo em grandes centros como São Paulo. Há também os casos de refugiados, imigrantes ilegais que ficam numa clausura, vinculados ao feitor que garante precariamente a existência deles, sem falar no trabalho infantil. São denúncias que ainda hoje persistem, e isso no século XXI não é mais possível. É uma precarização absurda, trabalho sem garantia de sobrevivência. É preciso que haja respeito e promoção do trabalho decente.
Adaptação. As transformações do mundo do trabalho exigem novas abordagens. O ideal é o pleno emprego – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Prioridades na gestão
Nossa prioridade será segurança e previsibilidade. A quantidade de ações trabalhistas é muito grande a cada ano, então é preciso que a manifestação do Poder Judiciário tenha coerência, estabilidade e previsibilidade. E, para isso, é necessário que se desperte a cultura dos precedentes, o aprofundar no debate dos casos repetitivos, criar uma tese que seja qualificada para reger aquelas obrigações e ser, naturalmente, obrigatória na jurisdição trabalhista. E, com isso, dar à sociedade o aceno de como se deve proceder. Essa é uma das questões. Criar precedentes qualificados que vão, naturalmente, ter força obrigatória. A outra marca será a cultura da conciliação. É preciso que tenhamos coerência nos julgamentos. Casos iguais precisam ser decididos igualmente. É necessário empoderar as partes para que elas solucionem o conflito com a mediação do Poder Judiciário, pela sua qualidade, pelo seu conhecimento, mas como mediador. A conciliação é a melhor forma de solucionar qualquer conflito. E o método precisa ser mais bem desenvolvido.
Relação com o STF
Temos contato bem próximo com os ministros do STF. As divergências em termos de posicionamento na solução de conflitos podem existir, mas temos um ambiente altamente saudável. Nós cumprimos as decisões do STF. O que ocorre é que, geralmente, a reclamação constitucional é uma modalidade de recurso estimulado por uma decisão contrária aos temas de repercussão geral do STF. E, muitas vezes, a reclamação é movida ou promovida pela parte inconformada que salta do primeiro grau para o Supremo Tribunal Federal, logo, não esgota as instâncias trabalhistas. É uma decisão precária, às vezes do juiz de primeiro grau. Então, é preciso que tenhamos essa abertura. Temos um relacionamento muito aberto com o Supremo Tribunal Federal e com os ministros que integram a Corte, que são amigos. •
Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A via do diálogo ‘
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