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A vivência da alteridade

A transposição para a tela de ‘Relato de Um Certo Oriente’ foca no encontro entre libaneses e indígenas

A vivência da alteridade
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Palavras e imagens. Retrato de Um Certo Oriente, dirigido por Marcelo Gomes (à esq.), foi inspirado no primeiro romance de Milton Hatoum, que, 35 anos depois da publicação, ganhou uma nova edição
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Relato de Um Certo Oriente foi o primeiro livro publicado por Milton Hatoum. Concluída em 1987 e lançada dois anos depois pela Companhia das Letras, a obra deu ao autor o primeiro de três prêmios Jabuti e é muito querida pelos leitores.

Apesar disso, Hatoum, que, na última década, tem tido alguns de seus livros adaptados para o audiovisual, sempre achou que, no caso de Relato, havia escrito um romance para não ser filmado. “Perdi a aposta”, brincou, em seu perfil no Instagram, no mês passado, quando Retrato de Um Certo Oriente foi exibido no Festival do Rio. O filme, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 21, é seu quarto texto transposto para a tela.

Órfãos do Eldorado (2008) deu origem a um longa-metragem dirigido por Guilherme Coelho, lançado em 2015. Dois Irmãos (2000) virou uma minissérie de dez episódios dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida na TV Globo, com Antônio Fagundes, Cauã Reymond e Eliane Giardini no elenco. O Adeus do Comandante, um dos contos que compõem o volume A Cidade Ilhada (2006), virou, pelas mãos do realizador Sérgio Machado, o longa-metragem O Rio do Desejo (2023).

Mas, quando Marcelo Gomes, diretor de Retrato de Um Certo Oriente, conheceu Milton Hatoum e disse, numa conversa informal, desejar transformar um de seus livros em filme, nenhuma dessas produções havia sido realizada ainda. Foi, portanto, com grande surpresa que o escritor ouviu o cineasta revelar que era justamente o Relato que gostaria de filmar.

“Ele tomou um susto!”, relembra Gomes, rindo, passada uma década. Numa segunda conversa, aí já menos informal, o cineasta avisou: sua ideia não era nem fazer uma adaptação nem ser fiel. “O livro é elíptico, muito marcado pelo fluxo de consciência e, a cada capítulo, tem um narrador. E a narrativa, além de trazer muitos personagens, traz muitos temas – amores proibidos, alteridade, memória…”

Não foi simples, dentro dessa multiplicidade de temas e vozes, encontrar um recorte. Foi apenas depois de algum tempo de trabalho que o diretor encontrou, no relato de Hatoum, aquilo que mais se aproximava de sua própria voz artística: um retrato da alteridade.

Gomes, assim como Hatoum, teve uma primeira obra marcante e premiada: Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), filme passado no Sertão brasileiro, na década de 1940, que promove um encontro improvável entre um alemão e um nordestino. Desta vez, o encontro é entre um libanês e uma comunidade amazônica.

“Tanto no Oriente Médio quanto na Amazônia, o problema do uso da terra é crucial”

“É um encontro radical, ao qual o cinema nunca tinha chegado”, diz. “No filme, as memórias escritas foram substituídas pela fotografia e as palavras, pelos olhares”, diz. Na trama, três libaneses, fugidos da guerra, desembarcam na Amazônia e chegam a uma comunidade indígena. A floresta do filme, nas palavras do cineasta, teve seus “50 tons de verde” substituídos por “50 tons de cinza”, que a tornam, a um só tempo, mais assustadora e menos deslumbrante.

“O livro foi escrito há bastante tempo e há questões de 2024, que me afligem, que não são contempladas pelo romance. Uma delas é que, tanto no Oriente Médio quanto na Amazônia, o problema do uso da terra é crucial”, pondera o diretor, para, em seguida, lembrar que uma das atrizes, que vieram para o Festival do Rio, não conseguiu voltar para Beirute, por causa da guerra em curso.

Gomes sempre esteve convicto de que parte do elenco tinha de ser libanesa e parte indígena: “A Manaus da década de 1940 era uma Babel de línguas, e eu queria que isso aparecesse com muita verdade”. Os testes com os atores do Líbano foram feitos online e, dos três escolhidos, dois nunca haviam trabalhado em um longa-metragem.

A aventura, no entanto, adquiriu proporções inimagináveis. A equipe foi para Manaus pouco antes do Carnaval de 2020 e, após três dias de filmagem tudo fechou por causa da pandemia. Dos três atores libaneses, dois tinham passaporte francês e puderam deixar o ­País. Outro passou três meses morando na casa do diretor.

Depois da interrupção e de todos os gastos por ela gerados, os produtores tiveram de captar novos recursos para o filme, que voltou a ser rodado em 2021. Montado entre 2022 e 2023, Retrato de Um Certo Oriente teve a primeira exibição pública no Festival de Roterdã, no início deste ano, e agora chega ao circuito comercial brasileiro. O filme também interessou a um distribuidor do Oriente Médio, que vai lançá-lo por lá. •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vivência da alteridade’

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