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Fabulações sobre o Leste Europeu

A escritora Ágota Kristóf, nascida na Hungria e radicada na Suíça, ganha novas edições de sua obra no Brasil

Fabulações sobre o Leste Europeu
Fabulações sobre o Leste Europeu
Fantasmas. Nascida em 1935, a autora teve a infância marcada pela Segunda Guerra – Imagem: Redes sociais
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Numa passagem do segundo livro da Trilogia dos ­Gêmeos, um dos protagonistas diz ao homem de quem quer comprar uma livraria: “Escrever é o que há de mais importante”. A frase poderia ter sido dita pela autora dos romances, Ágota Kristóf (1935-2011), que nasceu na Hungria, radicou-se na Suíça e escreveu toda a sua obra em francês.

Publicada originalmente entre 1986 e 1991, a trilogia formada por O Grande Caderno, A Prova e A Terceira Mentira é agora lançada na íntegra no Brasil pela Dublinense. Os dois primeiros livros chegaram a ser publicados aqui, pela Rocco, mas estavam, há muito tempo, fora de catálogo.

Quase simultaneamente, no País, é lançado também A Analfabeta, Um Relato Autobiográfico, pela Editora Nós, que conta, em 56 páginas, a trajetória da infância, passada em plena Segunda Guerra Mundial, na Hungria, até a vida de escritora premiada, na Suíça. A Nós prevê publicar também o conjunto de narrativas breves Tanto Faz e uma nova tradução de Ontem.

O poder de fabulação da autora, que, como mostra A Analfabeta, remonta à infância, fica muito evidente na Trilogia dos Gêmeos – que também tem na Segunda Guerra Mundial um elemento importante.

O primeiro livro se passa num pequeno vilarejo de um país sem nome que enfrenta uma guerra. A narrativa começa com uma mãe deixando seus dois filhos pequenos – os gêmeos Claus e Lucas, cujos nomes só saberemos no segundo livro – sob os cuidados da própria mãe, com quem ela não se dá bem.

O Grande Caderno. Ágota Kristóf. Tradução: Diego Grando. Dublinense (192 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

A Avó, assim chamada, é grosseira e severa, e dá casa e comida aos meninos sob a condição de que eles a ajudem na horta e na criação de animais, de onde tira seu sustento.

Essa educação rígida é narrada num staccato seco como a vida dos personagens – há também, entre outros, uma menina a quem chamam de Lábio Leporino e sua mãe cega e surda.

A Prova. Ágota Kristóf. Tradução: Diego Grando. Dublinense (192 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Os meninos relatam seu cotidiano num grande caderno, lido apenas por eles. Nos romances seguintes, esse registro terá uma importância ainda maior, pois servirá como memória de um para o outro, quando estiverem separados.

Ágota Kristóf narra de forma quase inocente os horrores enfrentados pelos meninos, mas também aqueles neles originados. Vivendo num mundo marcado pela guerra, eles são crianças de uma moral assustadora.

A Terceira Mentira. Ágota Kristóf. Tradução: Diego Grando. Dublinense (176 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

O segundo volume começa exatamente onde o primeiro termina, mas passamos então a acompanhar um novo tipo de subjetividade: a do pós-Guerra.

Claus conseguiu atravessar a fronteira minada do país totalitário onde vivia e se separa do irmão. E o livro acompanha Lucas, que ficou sozinho – a Avó morrera no primeiro livro.

A Analfabeta, Um Relato Biográfico. Ágota Kristóf. Tradução: Prisca Agustoni. Editora Nós (56 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

Ele recomeça sua vida ao dar abrigo a uma jovem mãe solo e seu bebê com deficiência física, a quem ele adota informalmente, e com quem irá viver na livraria que compra.

Conforme cresce, o menino vai se revelando o mais inteligente da escola, mas isso não evita que seja vítima da crueldade dos colegas. Lucas tenta protegê-lo, chegando a abrir uma sala de leitura para outras crianças se aproximarem de seu filho adotivo.

Nessa parte da narrativa, Kristóf começa a dar sinais de que as coisas não estão muito bem, para os personagens e para a forma do romance, antecipando o que acontecerá no terceiro volume: o esfacelamento da narrativa como tal.

Na última parte da trilogia, Claus – ou Klaus, ou, talvez, Lucas – volta para a cidade em busca do irmão e, aos poucos, a autora se encaminha para a destruição do romance enquanto gênero. Dividido em duas partes, o terceiro livro conta duas histórias que podem correr em paralelo em planos diferentes, ou mesmo se anular.

Se o gênero romance se desenvolveu no século XVIII com a ascensão da burguesia, ele passou por diversas transformações em especial no século XX, seja com o modernismo e sua busca pela inovação da linguagem, seja, mais tarde, com a destruição de elementos fundamentais.

A autora percorre, em seus três livros, o próprio caminho do gênero romance que, do realismo, foi passando por outras formas até chegar à pós-modernidade, que comporta narrativas que negam a própria ideia de narrativa.

Essa trajetória é também a da Europa – em especial do Leste Europeu, com o fim da guerra, e o regime comunista. É bom lembrar que Ágota publicou o terceiro livro em 1991, e os horrores históricos que ela narrou nos romances publicados em 1986 e 1988 já haviam passado por um escrutínio.

As duas narrativas do último volume, que se digladiam, podem ser lidas como um reflexo de um momento histórico que já passou: um momento no qual quando havia duas possibilidades, capitalismo e comunismo, e a utopia ainda estava no horizonte, embora de forma bem desgastada.

Em A Analfabeta, encontra-se outra Ágota, muito mais direta, mas cuja trajetória também ilumina a dos seus personagens – embora eles não sejam figuras biográficas.

“Leio. É como uma doença. Leio tudo o que me chega às mãos, aos olhos: jornais, livros escolares, manifestos, pedaços de papel achados pela rua, receitas de cozinha, livros para crianças. Tudo o que está impresso”, começa a escritora, em ações que remetem à dos gêmeos.

Nesse livro, a autora escreve que, quando foi questionada, em Berlim, numa leitura pública de O Grande Caderno sobre o motivo de escrever, ela disse: “Alguém torna-se escritor escrevendo com paciência e obstinação, sem jamais perder a confiança naquilo que escreve”. •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fabulações sobre o Leste Europeu’

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