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Desconstruir o poder do dinheiro

Luiz Gonzaga Belluzzo e Nathan Caixeta enfrentam os mitos disseminados pelo pensamento econômico dominante

Desconstruir o poder do dinheiro
Desconstruir o poder do dinheiro
Olhar multifacetado. Belluzzo, além de lidar com conceitos clássicos e modernos da economia, passeia pela filosofia e por outros campos das ciências humanas – Imagem: Acervo Pessoal/Luiz Gonzaga Belluzzo
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Em seu mais recente livro, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, de longa carreira acadêmica e de assessoramento técnico, formador de gerações de economistas e autor de dezenas de livros e artigos, une-se pela ­segunda vez ao brilhante jovem economista ­Nathan Caixeta para nos brindar com uma instigante crítica do pensamento econômico hegemônico de nossos dias.

Avenças e Desavenças da Economia trata, em última análise, de desconstruir conceitos que são intuitivos, simplificados e, portanto, de fácil assimilação pelo senso comum. Uso um exemplo para ilustrar o que digo: observamos diariamente o Sol nascer a Leste, migrar pelo céu e se pôr a Oeste. A conclusão a que chegaram nossos antepassados, sem mais instrumentos de observação que o olho nu, é tão óbvia quanto incorreta: o Sol gira em torno da Terra.

Assim podemos interpretar os conceitos utilizados pelos economistas ­mainstream, que repetem mantras simplificadores ao comparar a economia de uma nação à de um lar (não se pode gastar mais do que se arrecada); de que as finanças públicas são como as antigas arcas do tesouro (alimentando o mito de que “não há dinheiro”); e, ainda por cima, os misturam a conceitos morais, como a virtude da austeridade em oposição ao pecado da “gastança”; e da supremacia do mercado sobre o Estado. São fórmulas falseadoras da realidade.

Tais conceitos, utilizados para explicar fenômenos complexos da vida social, são apresentados de forma simples e elegante, mas conduzem a uma conclusão completamente errada, parafraseando H.L. Mencken.

Eles desprezam o que desde Keynes conhecemos como “circuito gasto-renda”: os gastos de um são a renda do outro, alimentando um ciclo de circulação da riqueza que sustenta o crescimento econômico. Ou seja, quando alguns deixam de gastar, os outros ganharão menos e, em consequência, também reduzirão seus gastos, reforçando a recessão.

Portanto, aquilo que é bom para um indivíduo, família ou empresa não é necessariamente bom para o conjunto da sociedade. Para além de desconsiderarem que os investimentos autônomos – aqueles que o Estado realiza sem calcular retornos financeiros de curto prazo – têm o condão de injetar demanda na economia, evitando a recessão. A conclusão – nada óbvia – é que o Estado tem um importante papel regulador na economia. Gastando de forma eficaz, o Estado ativa a economia e, de quebra, reforça o próprio caixa.

Desde Keynes, discutimos que não é a poupança prévia que permite o investimento. O Estado tem a propriedade de criar moeda (assim como os bancos, seus prepostos), seja emitindo papel-moeda, moeda escritural ou títulos de dívida. Outra coisa não foi o processo de “facilitação monetária” que custou trilhões de dólares aos Estados nacionais na crise do subprime de 2007–2008. Porém, ­quando se trata de salvar os circuitos de acumulação privada de riqueza da iminente ­débàcle, não se percebe qualquer estridência dos trombones midiáticos a serviço do mercado contra a “gastança” e o aumento do endividamento.

Procuram também desinformar sobre o papel da dívida pública e dos juros na formação da riqueza privada. É preciso compreender que a dívida pública é uma peça fundamental no funcionamento da engrenagem que faz circular ou se abrigar dos perigos – como pedra de toque do sistema financeiro – a riqueza acumulada pelos agentes privados.

Avenças e Desavenças da Economia. Luiz Gonzaga Belluzzo e Nathan Caixeta. Editora Contracorrente (222 págs., 90 reais) – Compre na Amazon

O conceito de bem comum é convenientemente borrado, para esconder aquilo que é essencial. Um truque de prestidigitação trata de esconder do público o quanto os juros são responsáveis pelo aumento da dívida pública, permitindo aos mesmos prestidigitadores atribuir ao Estado “ineficiente” (portanto, a toda sociedade) a expiação dos pecados privados.

Belluzzo e Caixeta passeiam com desenvoltura pelos economistas, dos clássicos aos modernos, assim como pela filosofia e por outros campos do pensamento social, da conjuntura, do cinema e da literatura, para discutir como a sociedade funciona de forma complexa e multifacetada – ao contrário dos economistas liberais neoclássicos, que desejam atribuir à economia ares de ciência exata.

Os economistas mainstream aferram-se a modelos de equilíbrio geral, informados por elegantes equações matemáticas e recheados de certezas que se esboroam ao primeiro encontrão com a realidade. Continuam atribuindo imaginários ratings AAA a conceitos que a força da ­realidade refuta a cada crise. E as crises, já ensinaram os clássicos, são cíclicas e inerentes ao próprio funcionamento da economia de mercado. Logo, são inevitáveis.

A financeirização global colocada pela destruição dos modelos keynesianos de regulação agrava o quadro. A finança perpassa e controla quase tudo, da produção à circulação, passando pelos circuitos de proteção da riqueza, e tornou-se tão poderosa que já não faz sentido falar, exceto talvez com finalidade didática, de contradição entre economia financeira e economia real.

Resisto a utilizar o termo – usado por alguns analistas – de metástase, porque induz incorretamente a um comportamento anômalo de um organismo qualquer. A financeirização é uma ­consequência lógica e necessária do desenvolvimento do capitalismo, inerente ao seu funcionamento, como já previra Karl Marx e discutem os autores.

O poder do dinheiro acumulado nas mãos de pouquíssimos há muito desafia o poder dos Estados nacionais – mesmo os mais desenvolvidos – e da sociedade organizada. O dinheiro adquiriu posições privilegiadas na mídia e na academia, que protegem seus interesses.

Nada que desafie a visão prevalente consegue prosperar na mídia hegemônica, assim como os acadêmicos divergentes não conseguem, senão como exceções à regra, ocupar postos importantes nas grandes universidades do mundo desenvolvido, nos governos ou nos organismos internacionais.

Os autores travam essa luta, neste livro e em seu dia a dia. Oxalá a bolha de proteção midiática e acadêmica seja furada e mais pessoas passem a ver que, sim, há alternativas. •


*Economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desconstruir o poder do dinheiro’

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