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“O samba me salvou”

Pretinho da Serrinha, criado num morro na zona norte do Rio, conquista o segundo Grammy Latino como produtor musical

“O samba me salvou”
“O samba me salvou”
Reconhecimento. Pretinho, que é também percussionista e cavaquinhista requisitado, acaba de ganhar o prêmio pelo disco Xande Canta Caetano – Imagem: Daniela Dacorso
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Ângelo Vitor Simplício da Silva, o Pretinho da Serrinha, 46 anos, não nega que, desde o início da carreira, sonhava ganhar a maior premiação da música na América Latina, o Grammy Latino. Pois o Grammy acaba de chegar pela segunda vez às suas mãos.

Vencedor do prêmio da categoria de produção musical em 2023, ele voltou a conquistá-lo na cerimônia ocorrida na quinta-feira 14 no Miami Beach ­Convention Center, nos Estados Unidos.

No ano passado, o prêmio veio pela produção, ao lado de Celso Filho e Martinho Antônio, do álbum Negra Ópera (2023), de Martinho da Vila, eleito o Melhor ­Álbum de Samba. Na semana passada, ele ­venceu na mesma categoria com o aclamado ­disco Xande Canta ­Caetano (2023), no qual ­Xande de ­Pilares ­interpreta ­Caetano ­Veloso.

“Aprendi a ser responsável muito cedo. No lugar de onde eu vim, não tem espaço para o erro”, diz o músico, em entrevista a CartaCapital. O lugar de onde ele vem é o Morro da Serrinha, no bairro de Madureira, Zona Norte do Rio. Ali nasceram a escola de samba Império Serrano e um dos mais reconhecidos e respeitados núcleos de jongo do País.

Sua mãe era porta-bandeira do bloco da comunidade e seu pai participava das rodas do botequim da escola de samba, onde ele, desde cedo, tentava infiltrar-se com um instrumento de percussão na mão.

Garoto prodígio, era, aos 10 anos, um dos diretores de bateria do Império Serrano. Aos 13, fez a primeira viagem internacional como músico, acompanhando o lendário Mestre Darcy do Jongo em excursão pela Itália. “Ele me ensinou muito. Lembro quando era moleque e o Darcy era o único na Serrinha que tinha saído do País. Era nossa referência e espelho”, recorda.

Sua formação como percussionista está diretamente ligada ao jongo e à bateria de escola de samba: “Para praticar, tinha de ficar olhando os mais velhos. Ninguém segurou na minha mão”. Foi também sozinho que aprendeu a tocar cavaco – depois, para se aperfeiçoar, frequentou aulas do instrumento.

“Ainda tem gente sendo criada em escola de samba, principalmente no ritmo. Bateria é uma coisa que não acaba. Salva muita gente. O moleque está ali, com 13, 14 anos, ele vai ao colégio, mas não tem o que fazer fora daquilo. É o samba que está mais próximo”, diz. “O samba me salvou.”

A virada em sua carreira musical veio há pouco mais de dez anos, quando passou a fazer sucesso com composições ­suas assinadas com Seu Jorge. “Comecei a tocar de um jeito diferente, um cavaquinho percussivo. Foi quando se destacaram Mina do Condomínio, ­Burguesinha e Felicidade”, lista.

O Morro da Serrinha, onde ele nasceu, é o berço da Império Serrano e de um núcleo de jongo

A partir daí, passou a compor com Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Moacyr Luz e Capinan. Em 2013, tornou-se comentarista de carnaval na TV Globo. No Rock in Rio de 2017, fez uma participação especial no show da cantora norte-americana Alicia Keys.

“Vivo meu melhor momento, com reconhecimento de outras pessoas de fora da bolha”, afirma. O que chama atenção em Pretinho da Serrinha é o fato de ter se tornado instrumentista, produtor e diretor musical requisitado de grandes estrelas sendo, na origem, um sambista – algo pouco comum no meio.

“Não toco piano, não sou maestro”, pondera, a respeito de si, quando fala sobre ter assumido a direção de trabalhos de artistas que trafegam por gêneros que vão muito além do samba, como Caetano Veloso.

Na condição de instrumentista – além de percussionista é cavaquinhista – é também requisitado no mainstream, tendo integrado as bandas de Marisa Monte e Lulu Santos, por exemplo.

Neste mês, nos encontros musicais semanais que promove na Arena Jockey, na Zona Sul do Rio, chamados Samba do Pretinho da Serrinha, recebeu a visita-surpresa de Milton Nascimento. Na rara aparição, o cantor mineiro cantou Maria, Maria ao lado do sambista, que não conteve o choro.

“Não é fácil ser sambista. Tem o preconceito. Chegam um pianista de orquestra e um cavaquinhista de samba. Imagina!”, compara ele, acostumado a, muitas vezes, dividir estúdio e palco com músicos de sólida formação acadêmica.

Mas, hoje, ele entende que a experiência adquirida no Morro da Serrinha é o que tem a oferecer: “Sempre levo minha raiz para as gravações e shows. Minha verdade é essa. Chego com pandeiro, cuíca, tamborim, cavaco”.

Nos últimos meses, o artista tem corrido o Brasil na turnê Caetano e Bethânia. Ele faz parte da banda como percussionista e é o único creditado como participação especial. São tantos os compromissos que ele lembra que, no ano passado, levou dois meses para pegar nas mãos seu primeiro Grammy. Quando a estatueta chegou em sua casa, no Rio, ele estava em viagem pelos Estados Unidos, com a turnê do disco Meu Coco (2021), de Caetano.

Mas, a partir do encerramento da excursão Caetano e Bethânia, em março de 2025, ele focará em projetos próprios, principalmente no seu segundo disco – o primeiro, Som de Madureira, saiu em 2018. Hoje, apesar da agenda cheia, ele não vê mais barreira para tocar, dirigir e produzir: “De onde a gente veio, as dificuldades foram tão grandes que, hoje, tudo é, em alguma medida, fácil”. •

Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“O samba me salvou”’

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