

Opinião
A doença na guerra
Estudos recentemente publicados na revista Lancet Psychiatry detalharam a gravidade dos problemas de saúde mental enfrentados pela população de Gaza


Desde outubro de 2023 o mundo está observando o desenrolar de uma guerra intensa, com destruição sem precedentes e o sofrimento humano gradativamente beirando a catástrofe.
Infelizmente, os ataques e os bombardeios já envolvem, além de Gaza, o Líbano e, menos intensamente, a Síria. E não há perspectiva de um fim imediato para as atrocidades.
Do ponto de vista médico, esses ataques afetam profundamente a todos na região, complicando seu precário estado de saúde, como alerta o doutor Fulvio Alexandre Scorza, professor do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp).
Estudos recentemente publicados na revista Lancet Psychiatry, pelos doutores Jabr S e Jamei YA, que atuam na Palestina com colaboração de especialistas da Organização Mundial da Saúde, detalharam a gravidade dos problemas de saúde mental enfrentados pela população de Gaza durante o conflito.
Conversamos com professor Fulvio sobre as consequências das guerras, principalmente no sistema nervoso central das pessoas nelas envolvidas.
CartaCapital: A guerra no Oriente Médio, assim como na Ucrânia, parece sem-fim. Que implicações isso tem sobre a saúde da população atingida?
Fulvio Alexandre Scorza: Estamos vivendo uma epidemia de guerras. As guerras, além de causar uma perda significativa de vidas humanas, têm efeito catastrófico e duradouro na saúde global. A guerra força, por exemplo, as pessoas a se deslocarem de suas casas em busca de segurança. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 70 milhões de pessoas tenham perdido suas casas recentemente, devido às guerras. Esses indivíduos, muitas vezes, perdem o acesso a água potável, alimentação de qualidade e a uma estrutura adequada de saneamento básico. Isso, além de aumentar o risco de desnutrição e doenças relacionadas a ela, leva ao aumento de várias doenças infecciosas em populações de refugiados, como tuberculose, raiva, leishmaniose e hepatite B.
CC: Nas zonas de guerra aumenta também o risco social das pessoas.
FAS: Claro. Observamos que as mulheres que vivem em zonas de guerra ou próximas a elas enfrentam um risco maior de estupro e violência sexual, gravidez indesejada e dificuldades de acesso aos serviços de atenção integral à saúde da mulher. Nesse sentido, a guerra impacta também a saúde física e mental de crianças.
CC: Como a ciência avalia os efeitos da guerra na saúde mental e do cérebro?
FAS: Dados atuais apontam que 54% dos ucranianos apresentam transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), 21% ansiedade severa e 27% sentem-se deprimidos ou muito tristes. Na Rússia, tem ocorrido um aumento considerável na compra de antidepressivos e medicamentos para dormir desde a invasão da Ucrânia. Apesar de depressão e ansiedade serem as condições mais comuns na Rússia, o aumento dos problemas de saúde mental está relacionado ao número crescente de homens que regressam com TEPT das zonas de conflitos.
CC: Existem dados a respeito desses distúrbios causados pela guerra no Oriente Médio?
FAS: Sim, e tem-se verificado que 26% dos jovens libaneses apresentam depressão; 44% ansiedade – aí incluída a ansiedade de separação – e 26% têm TEPT. Na Síria, o cenário é igualmente alarmante. A avaliação da saúde mental da população e de refugiados sírios no período de guerra revelou que a depressão variou de 11% a 49%, a ansiedade de 49% a 55% e que 37% desses indivíduos apresentavam sintomas de TEPT. Similarmente, os ataques em Gaza têm tirado vidas de crianças, adultos e idosos e deteriorado a saúde física e mental das pessoas. Vários estudos demonstram que a exposição à violência, à destruição generalizada e à perda de familiares e amigos tem aumentado os casos de depressão, ansiedade e TEPT em ambas as populações. Sem pormenorizar, os transtornos mentais são fenômenos complexos caracterizados por alterações na atividade cerebral. Atualmente, recomenda-se a atuação de equipes multidisciplinares para proporcionar acolhimento e abordagens terapêuticas eficazes para o restabelecimento das funções cerebrais, aliviando o sofrimento causado pelos transtornos mentais. Em meio à guerra, é extremamente difícil enxergar os caminhos terapêuticos possíveis. Após períodos de guerra, o processo de reconstrução da saúde mental é viável e necessário. Nesse sentido, os cientistas clamam por paz. •
Publicado na edição n° 1338 de CartaCapital, em 27 de novembro de 2024.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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