Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
A autodeterminação das mulheres negras evangélicas
O campo progressista campo enxerga mulheres negras evangélicas como vítimas a serem salvas. Talvez, mudar nossa perspectiva sobre essas mulheres que hoje representam 26% da população evangélica, faça com que saibamos estabelecer conexões com elas antes da extrema-direita


Mais um novembro, mais um mês da consciência negra se inicia e começa aquele aperto no estômago que sempre temos, neste mês. Se de um lado temos os defensores da consciência humana (risos), por outro temos aqueles que acreditam que pessoas negras são aquelas que dependem da caridade da branquitude. Que em novembro temos que demonstrar o sofrimento que o racismo impõe às pessoas negras brasileiras – ao invés dos brancos repensarem seus privilégios.
Pois bem, isso acaba fomentando uma imagem romantizada da superação das dificuldades que impõe às mulheres negras a imagem de guerreiras, fortes, que tudo aguentam e que tudo superam. Esse imaginário da força da mulher negra é diretamente uma herança da escravização de pessoas negras que obrigou mulheres negras a realizarem trabalhos forçados e a produzirem muito com péssimas condições de vida e sobrevivência.
Esse imaginário da força da mulher negra, que enxerga a utilidade em seus corpos e normatiza o sofrimento como a métrica da superação, faz com que o Mês da consciência negra seja palco para a exaltação da mulher que sofreu e chegou lá: Elza Soares, vítima de abuso infantil; Carolina Maria de Jesus, a grande redatora da fome; Conceição Evaristo, a grande escritora brasileira que foi reconhecida apenas com 70 anos de idade; Marielle Franco, mãe adolescente que se tornou uma das políticas brasileiras com grande destaque nos anos 2010; Dona Mirtes que resolveu estudar Direito, após ver seu filho ser assassinado pelo abandono de sua patroa…
São tantas histórias de dor e sofrimento, que Vilma Piedade elaborou, para mim, o melhor conceito para dar conta desta dura realidade: dororidade. Mas o que é a dororidade? É a contínua revitimização de mulheres negras e sua prisão a uma vida de dor? Jamais. Dororidade se faz das conexões que nossas cicatrizes criam em nossos corpos e almas. Cicatrizes pelas quais nos reconhecemos, mas que não nos resumem.
Como diria a música Amarelo (Emicida): permitam que eu fale, e não as minhas cicatrizes. Estou farta de que no mês da consciência negra nos resumam às nossas cicatrizes. Não que eu me envergonhe delas, e tão pouco que eu as queira esquecer. Mas esse lugar de subalternidade e subjugação coloca mulheres negras em uma condição de pessoas que precisam ser tuteladas, e isso me revolta.
E, quando se trata de mulheres negras evangélicas, essas são vistas como alienadas. Como àquelas que acreditam piamente no pastor e que não têm capacidade crítica. Muitas vezes são vistas como não racionais, por serem religiosas. Agora me diga, mulheres que sustentam suas famílias com um salário mínimo, com a venda de revistas de cosméticos, bolos e tantas outras atividades econômicas complementares, são mulheres alienadas? Irracionais? Me recuso a acreditar nisso.
E aí, o campo progressista olha para as mulheres negras evangélicas e pensa: “essas mulheres precisam ser salvas de sua religiosidade”. “Essas mulheres votaram na direita”. “Essas mulheres apoiaram Bolsonaro”… Sinceramente? Eu acredito que nestes 31% de abstenção que observamos no 2º turno na cidade de São Paulo, inclui muitas mulheres negras. E a visão de alienadas pelo conservadorismo que temos delas, é visão que elas têm de si?
Enquanto nos perguntamos como convencer o pobre de direita, porque não nos perguntamos como conversar com a população que está incrédula em relação ao nosso projeto de pais? Ora, enquanto vemos mulheres negras alienadas do mundo, por causa da religião, elas se enxergam como batalhadoras, que lutam cotidianamente por suas famílias, com o auxílio de Deus.
Patrícia Hill Collins, traz um conceito que se constrói em uma díade: imagens de controle e autodeterminação. Enquanto a sociedade impõem imagens de controle a esses corpos negros femininos, essas mulheres se autodeterminam enquanto protagonistas de suas vidas e de suas espiritualidades. Quando pensamos que a cada 10 lares chefiados no Brasil, 6 são chefiados por mulheres negras, não podemos achar que essas mulheres são sujeitas submissas.
Não estou considerando que o patriarcado cristão não deixe suas marcas na sexualidade, identidade de gênero e imaginário de família dessas mulheres, de modo algum. Contudo, quero que olhemos para essas mulheres de forma que as humanizemos. Ora, essas mulheres carregam uma sociedade nas costas, não é possível que as vejamos apenas como as mulheres “alienadas” pelo pastor.
Talvez, mudar nossa perspectiva sobre essas mulheres que hoje representam 26% da população evangélica, no Brasil, faça com que saibamos estabelecer conexões com elas. Essas mulheres não podem ser jogadas no precipício da extrema-direita. E enquanto não entendermos como elas se autodeterminam, nunca chegaremos às suas mentes e corações. Ou melhor, nunca entenderemos suas mentes e corações. E sem entendê-las em sua dimensão humana, autônoma e que prescinde de salvação, nunca dialogaremos com elas. Que os ventos soprem rumo à construção real de pontes. Não precisamos de mais brancos salvadores!
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