Cultura
“O animal cordial” captura a tensão de um país banhado no justiçamento
Há muito do Brasil atual entre a cozinha e o salão de um restaurante em São Paulo, onde se passa o filme de estreia de Gabriela Amaral Almeida


Há muito do Brasil de 2018 entre a cozinha e o salão de um restaurante em São Paulo onde se passa o filme “O Animal Cordial”, que estreou na quinta-feira 9.
Tem a carteirada do cliente extravagante que fala de vinhos como quem referenda autoridade e expõe a acompanhante como um troféu.
Tem a relação patrão-empregado com jornadas de bordas borradas.
Tem a aliança política como estratégia de sobrevivência.
Tem o armamento como estratégia de defesa.
Tem o direito do cidadão de bem.
Tem a comunicação cortada entre o mundo de fora e a bolha onde todos parecem aprisionados – embora com o celular nas mãos.
Tem a descrença no Estado.
E tem, sobretudo, um discurso que, levado às últimas consequências, faz de qualquer ambiente social uma panela de pressão e tensões.
São esses os ingredientes que fazem do longa de estreia de Gabriela Amaral Almeida um retrato de um país tomado de ódio. O ódio, aqui, é um galão de gasolina; basta que alguém acenda uma faísca para as máscaras ensaiadas ao espelho, para agradar e não afugentar clientes, chefes e colaboradores, virem ao chão. No lugar delas está a essência. E ela é o que temos de mais brutal.
Os elementos fazem do filme, que a diretora classifica como terror slasher, uma janela para observar até onde nos leva o cansaço, numa ponta, e a descrença em qualquer possibilidade de reconciliação, em outra.
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No caso de Inácio, o dono do restaurante protagonizado por Murilo Benício, o sintoma se manifesta logo nas primeiras cenas. Ele reage a um assalto no local, matando um dos bandidos e rendendo outro. “Não adiantou chamar a polícia da última vez”, sentencia, com a arma na mão.
Ali o Estado não entra. Dali ninguém sai.
O que vem a seguir é a barbárie.
Com uma régua própria de justiçamento, o proprietário que tentava se mostrar cordial com os frequentadores, nem tanto com os funcionários, se revela um sociopata disposto a aplicar todo tipo de suplício para vingar não apenas a violência do assalto, mas os pequenos conflitos e humilhações desenvolvidos ali.
Isolados, aqueles corpos são observados em uma lente de aumento conduzida pela diretora, como um microscópio. Sem mediação da Justiça, em caixa alta, os personagens se confrontam como se representassem arquétipos: o proprietário, o cozinheiro gay e desrespeitado, os funcionários explorados, a garçonete que faz o meio-campo entre a subserviência ao chefe e o próprio sadismo.
A bestialidade, ali, não é monopólio masculino ali, e a sororidade que em determinado momento se ensaia é estilhaçada com gilete na cena seguinte.
Em um país que agora aplaude torturador, desdenha o passado de repressão e discute o armamento civil como solução para a violência institucionalizada, a lente ampliada passa longe de apontar o inverossímil.
Roteirista de nomes como Walter Salles e Cao Hamburger, Gabriela dirigiu também premiados curtas que retratam o universo infantil e o medo da perda. Em “O Animal Cordial” não há crianças no elenco, mas a perspectivas do fim, e da morte, parece infantilizar os personagens adultos, seja quando fazem manha ao serem contrariados, seja quando urinam nas calças quando dominados pelo pavor.
Apesar disso, ninguém é inocente ali até segunda ordem. O nonsense capturado pela diretora é, conforme ela mesmo define, o absurdo de um sistema econômico-social que tem se provado, dia após dia, insustentável e cruel.
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