Opinião
Com Trump de volta, países do Sul devem se preparar para uma nova investida colonial
O pleito deve chamar atenção dos progressistas brasileiros: quando a justiça não é rápida, deixa até de ser justiça
“Não há crime maior do que ter tudo o que se deseja; não há desgraça maior do que não saber se contentar; não há calamidade maior de que desejar acumular. A satisfação de estar satisfeito representa a satisfação eterna” – Tao-Te King
A eleição de Donald Trump foi apenas a derrota da justiça. Não foi a vitória dele.
Pluri-indiciado e, em alguns casos, condenado, por crimes que vão da subtração de documentos oficiais, passando por abuso sexual, fraude contábil e tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente trará à cena internacional trevas, que deverão ir da aceleração do aquecimento global ao apoio a tiranias genocidas como a de Benjamin Netanyahu, em Israel.
Lá, nos Estados Unidos, como cá, no Brasil, setores dos próprios progressistas apontam o “identitarismo” (neologismo despectivo para defensores de direitos humanos) como sendo responsável pelas derrotas.
Um erro: não percebem que justamente as mulheres, principalmente as pretas, e os LGBTQIA+ foram os principais responsáveis pelos votos obtidos por Kamala Harris (aproximadamente 92% das mulheres negras votaram nela e 86% dos LGBTQIA+).
De qualquer maneira, o pleito deve chamar atenção dos progressistas brasileiros: quando a justiça não é rápida, deixa até de ser justiça.
De fato, a condenação dos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de Janeiro se faz urgente, inclusive do ex-presidente genocida.
Sem isso, estaremos todos em perigo, para utilizar a expressão de Pier Paulo Pasolini, quando se referia ao estágio superior da luta de classes, em que todos estariam em perigo, opressores e oprimidos, profecia que se cumpre tragicamente com o aquecimento global.
Destarte, a omissão da justiça permitiu o triunfo do neocolonialismo e do neoliberalismo, devendo os países do Sul se preparar para nova investida colonial, pois na raiz da proposta trumpista está a recolonização do Sul, principalmente das Américas, julgada propriedade e campo de exploração em benefício do Norte, desde o século XIX.
Nesse sentido, uma boa notícia no Brasil: a sociedade civil convocou mais uma reunião preparatória para a eventual conformação do Conselho de Política Externa Brasileira.
Trata-se de ideia que vem sendo debatida há 12 anos e que parece, finalmente, ter encontrado alguma receptividade por parte do Itamaraty.
O próximo debate deverá ocorrer nesta semana, durante a reunião do G20, no Rio de Janeiro, no contexto do G20 Social.
Alguns pontos que poderiam contribuir para a conformação dessa importante instância:
1) desenho semelhante ao do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, ou seja, dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de governo. A presidência caberia sempre à sociedade civil, a secretaria, ao governo. O convite ao ex-presidente do CONSEA Renato Maluf para ser um dos palestrantes demonstra o reconhecimento da excelência daquele formato. 2) Empenho na formação em relações internacionais, não apenas em âmbito universitário, mas das massas periféricas, geralmente mantidas à margem também desse debate. Para isso, seria fundamental a participação dos Ministérios da Educação e da Cultura, de forma a contribuírem para essa formação. Ao lado disso, caberia engajar um amplo espectro de atores culturais, a fim de trazerem o teatro e o cinema para os centros e as periferias, submetidos, todos eles, à visão monopólica das oito famílias que detêm a informação de massa no Brasil. 3) Por último, mas não menos importante, o protagonismo deverá caber àqueles e aquelas que fazem a integração internacional 24 horas por dia: os habitantes das regiões de fronteira, que, contra ventos e marés, implementam a principal – e constitucional – meta da política externa brasileira, a integração latino-americana, conforme disposto no parágrafo único do artigo 4o da Constituição.
Com efeito, se o Partido dos Trabalhadores e os demais partidos do campo progressista quiserem retomar o protagonismo nacional caberá, em primeiro lugar, ouvir, em segundo, ouvir ainda mais, e só no terceiro lugar dizer algo.
Nesse sentido, as relações internacionais poderão em muito contribuir: o quanto temos a aprender, por exemplo, com o México! Ao ir para as periferias, o Morena, o partido no governo, não apenas manteve a Presidência, mas também ganhou praticamente todos os governos estaduais e as prefeituras.
Para isso, estabeleceu um representante por quarteirão, ouvindo, esclarecendo e acompanhando a implementação das decisões tomadas pelo governo central.
Como essa, há numerosas outras experiências exitosas em políticas públicas que têm muito a aportar à realidade brasileira.
Sejamos, também nesse campo, paulofreirianos: aprendamos e ensinemos uns aos outros!
Em uma era em que muitos cancelam o outro, seja matando, como faz a extrema-direita de Israel, seja prendendo, como faz a Europa com os imigrantes, seja desconhecendo, como fazemos com relação às periferias, ou nos fechando em nossos fones de ouvido, vivemos erigindo muros, barreiras e fronteiras, físicas ou mentais, estas ainda mais efetivas.
Em contraposição, Leonardo Boff, em O pescador ambicioso e o peixe encantado (editora Vozes), recorda-nos: “A África é muito mais pobre do que nós; porém, é muito menos desigual, haja vista que, devido à sua cultura tribalista, reparte melhor os frutos do trabalho. Conhece a palavra, hoje mundializada, ‘ubuntu’: ‘eu só sou eu por meio de você’. Daí nasce o sentido da importância do outro, de seu respeito e do sentimento de solidariedade e de empatia”.
Que vasto e maravilhoso mundo, quando o nosso desejo é aprender e — talvez — ensinar!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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