Economia
Não torturem os números
Sempre “surpreendidos” com o bom desempenho da economia, os analistas continuam a exagerar o risco inflacionário


O crescimento de 1,4% da economia brasileira no segundo trimestre de 2024 fez com que o Banco Central revisasse as estimativas do PIB para 3,2% para o corrente ano e “surpreendeu” os analistas de mercado e jornalistas econômicos que esperavam, na grande maioria, uma taxa bem menor. Em outubro, o mercado foi mais uma vez “surpreendido” pela elevação, por parte da agência de rating Moody’s, da nota de crédito do Brasil de Ba2 para Ba1, com perspectiva positiva. Segundo a Moody’s, a elevação da nota brasileira reflete a melhora significativa no crédito do País, incluindo um crescimento mais robusto do PIB e um histórico de reformas econômicas e fiscais.
Motivos para o bom resultado da atividade econômica não faltam: a taxa de desemprego caiu para 6,6% ao ano no trimestre encerrado em agosto, a massa salarial cresceu, o salário mínimo tem crescido em termos reais, os programas sociais do governo federal foram turbinados, incluindo o gasto com o Bolsa Família, e o programa “Minha Casa, Minha Vida” voltou a estimular a construção civil.
Vejamos os principais componentes desse crescimento. Pelo lado da demanda, a formação bruta de capital fixo (FBCF) cresceu 5,7% e o consumo das famílias teve expansão de 4,9%, respectivamente, na comparação com o mesmo trimestre do ano passado. No que diz respeito ao lado da produção, o incremento da indústria foi de 1,8% e 3,9% e no setor de serviços foi de 1,0% e 3,5%, também em comparação ao mesmo período referido, respectivamente.
Analisando mais detalhadamente os dados divulgados pelo IBGE, chama atenção o indicador FBCF/PIB, que se elevou para 16,8%, e o crescimento de 3,5% da construção civil, importante setor que sinaliza o desempenho da economia. É importante ressaltar que as expansões do investimento e da construção civil ocorreram mesmo em um contexto monetário adverso, em que as taxas de juro, nominal e real, estas deflacionadas pelo IPCA, atingem 10,75% ao ano e 5,7% ao ano em termos reais, respectivamente, destacando que a última é uma das maiores do mundo. Essas considerações são importantes, pois o investimento produtivo é a causa causans da capacidade de expansão de longo prazo da economia.
Pela lógica da banca, o Brasil está fadado a crescer pouco. Se o resultado sai melhor que o esperado, então algo deve estar errado
O ponto negativo ficou por conta do setor agropecuário, que apresentou queda de 2,9% ao ano, ante o segundo trimestre de 2023. Segundo o IBGE, as explicações para o recuo do setor estão associadas ao fato de que no ano passado o agronegócio teve um desempenho robusto e, portanto, a base de comparação fica comprometida. Outro fator são as intempéries climáticas, tais como secas no Centro-Oeste e enchentes no Sul do País, que acabaram afetando o setor.
A despeito dos bons indicadores da economia real, os analistas e jornalistas econômicos não somente se mostraram surpresos com a atual dinâmica da economia brasileira, mas, de forma exagerada, argumentam que a irresponsabilidade fiscal do governo e o desequilíbrio do setor público, bem como a ausência de uma agenda de reformas estruturais, tendem a acelerar a inflação e comprometer a trajetória de crescimento do PIB.
Em outras palavras, o Brasil estaria fadado a um baixo crescimento, uma vez que as estimativas do PIB potencial apontariam para um crescimento de 2% a 2,5% ao ano, como se o produto potencial fosse uma variável estática a curto e médio prazo, não influenciado pelo crescimento da demanda mesmo no longo prazo. Nesse particular, cabe lembrar que há vários estudos empíricos que mostram haver uma relação robusta entre crescimento da demanda e crescimento do PIB no longo prazo, pois as empresas somente estão dispostas a investir, ampliando capacidade produtiva e incorporando progresso técnico, se tiverem uma perspectiva de aumento de suas vendas.
Ademais, existe de fato um problema de histerese – entendido como uma posição cíclica da economia afetando sua tendência de crescimento – no cálculo do produto potencial: o relativamente baixo desempenho da economia brasileira nos últimos anos, ao contrário do forte crescimento médio de 4% ao ano no período 2004/2013, faz com que o cálculo do produto potencial, visto a partir de um espelho retrovisor, seja baixo. Isto porque, sendo ele uma variável não observável, normalmente sua estimação é feita através de “média de métricas estatísticas”, incluindo extração de tendência linear, exponencial e quadrática e o Filtro Hodrick-Prescott (HP), com base em dados passados.
Essa discussão nos faz lembrar uma máxima do economista polonês Michal Kalecki: o longo prazo é uma sucessão de curtos prazos. Dado que não há nenhum descontrole inflacionário à vista, um crescimento moderado e sustentado da demanda deve ser visto como um fator positivo para o crescimento econômico de longo prazo, sem prejuízo de políticas industriais voltadas para estimular uma mudança estrutural na economia. Para tanto, é fundamental que o governo – incluindo o Banco Central – consiga fazer um correto gerenciamento da demanda agregada da economia, utilizando um bom mix das políticas monetária, fiscal e cambial.
Por fim, é oportuno lembrar que, como dizia a professora Maria da Conceição Tavares, recentemente falecida, análises econômicas devem ser feitas com base em argumentos lógicos e empíricos, não com viés puramente político-ideológico. Acrescentaríamos, parafraseando e resgatando a passagem de uma carta escrita em 16 de julho de 1928 por John Maynard Keynes para seu amigo e discípulo Roy Harrod, na qual ele dizia querer “enfatizar com veemência a questão de a Economia ser uma ciência moral”, que princípios éticos-morais também são imprescindíveis para as análises econômicas. •
*Fernando Ferrari Filho é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS e ex-presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). Luiz Fernando de Paula é professor do Instituto de Economia da UFRJ, coordenador do Grupo de Estudos de Economia e Política da Uerj e ex-presidente da AKB.
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não torturem os números’
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