

Opinião
Sem razões para celebrar
A Lei Anticorrupção brasileira completa 11 anos sem conseguir alcançar seu objetivo, além de ter sido usada pelos lavajatistas para obter a capitulação de diversas empresas


A Lei Anticorrupção brasileira acaba de completar 11 anos, mas temos pouco a comemorar. Sendo uma punição estritamente voltada para empresas, referido regime sancionador foi instituído para conviver com outros sistemas repressivos, tais como criminal e disciplinar, estes, sim, destinados a incidir sobre as pessoas físicas. Do modo como foi construída, a lei já incorreu num primeiro problema: criou uma responsabilidade que dispensa a aferição de qualquer elemento subjetivo, doloso ou culposo, por parte dos sócios ou administradores da pessoa jurídica. Basta o nexo de causalidade entre uma conduta, comissiva ou omissiva, e o dano.
Entretanto, o elemento volitivo deve, precipuamente, nortear as pautas responsabilizadoras, às quais não devem, em transbordamento punitivo, fulminar a empresa, bem como a propriedade privada e a livre-iniciativa. Ademais, a previsão de condutas puníveis na Lei Anticorrupção ocorreu através de tipos abertos, ao contrário de precisa demarcação de condutas reprováveis. A consequência é que a lei abrange grande número de situações passíveis de punição. Com a nomenclatura que adotamos em nossos estudos, trata-se da chamada hipernomia, a qual confere ao intérprete dotado de poder decisório o ilegítimo poder de conferir a extensão e o alcance que pretender, isso à luz dos interesses extrajurídicos momentâneos.
Outro aspecto que se coloca quanto à Lei Anticorrupção brasileira é que ela foi utilizada pelos agentes do autoritarismo lavajatista para obter a capitulação de diversas empresas brasileiras. Além do transbordamento de competências autocompositivas por parte do Ministério Público Federal, compromissos pecuniários estratosféricos foram assumidos e, atualmente, prejudicam o desempenho e colocam em risco a própria sobrevivência das companhias. Tudo isso ocorreu também através da nossa Lei Anticorrupção.
Mais especificamente, a vulgarmente conhecida como Operação Lava Jato não se valeu apenas dos instrumentos de persecução penal, mas também da Lei Anticorrupção brasileira como meio de exceção. Para além das diversas violações aos direitos fundamentais, ao devido processo legal, ao princípio da imparcialidade da jurisdição e dos deveres impostos aos membros do Ministério Público, orquestrou-se, em detrimento da própria democracia, da estabilidade das nossas instituições e das empresas nacionais, um projeto de domínio político e de ascensão messiânica de agentes públicos. Muito além de mero erro hermenêutico, ativismo ou de qualquer manifestação de decisionismo voluntarista, fulminou-se, através de táticas de exceção, o pacto civilizatório estabelecido entre o Estado e os indivíduos.
Diversos espaços civilizatórios foram minados pelo agir soberano, consoante concepção schmittiana daquele que decide sobre a exceção e suspende direitos. A lógica do lícito-ilícito, própria do Direito, foi superada por uma lógica absolutamente distinta. Referida exceção caracteriza-se, ainda, pela simplificação da decisão, a qual é desprovida de qualquer mediação real pelo Direito e, ainda, marcada por uma provisoriedade inerente. Não se trata de extinguir o Direito, mas de suspendê-lo em situações específicas.
A história humana não ocorre através de fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece. Elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Ou seja, não podemos nos esquecer que inexistem garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias. É por essa razão que precisamos realizar incessante escrutínio da Lei Anticorrupção brasileira, que se mostrou incapaz de enfrentar a corrupção e, concomitantemente, de preservar fontes de emprego e renda.
O Estado de Direito e a democracia sucumbem ao agir soberano em decorrência da forte influência do positivismo analítico, que, lastreado no paradigma subjetivo-idealista e na pureza metodológica, alargou os limites da discricionariedade do agente estatal dotado do poder decisório. Essa discricionariedade ampara-se, muitas vezes, no apelo de narrativas de enfrentamento à corrupção e na eleição de inimigos públicos.
O avanço na prevenção, na investigação e na repressão da corrupção no Brasil requer que olhemos para o passado, reconhecendo a falibilidade das nossas instituições e os efeitos deletérios da oportunista substituição do código próprio do Direito para outro de exceção. •
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem razões para celebrar’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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