

Opinião
A quem importa a morte de Ryan?
A imensa dor das mães negras e periféricas se converte em uma batalha contra um sistema que, em vez de proteger, mata inocentes


Na Baixada Santista, a brutalidade do Estado impôs luto a mais uma mãe periférica. Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas quatro anos, foi morto com um tiro do fuzil em Santos, no litoral paulista.
Não se trata de um caso isolado, mas sim de uma tragédia coletiva. Ryan foi vítima do um ciclo estrutural de violência contra as periferias do Brasil. Seu assassinato é o reflexo de uma História que desvaloriza a vida negra desde a infância, como apontaram Sueli Carneiro e Kabengele Munanga.
A morte de Ryan expressa também o que alguns estudiosos chamam de “direito penal do inimigo” — uma teoria que desumaniza e elimina determinados indivíduos, tratados como ameaças a serem extintas, e não como cidadãos merecedores de direitos. Nas periferias, essa lógica se concretiza na atuação da Polícia Militar. Como destaca a criminologia crítica de Thula Pires, a morte de corpos negros e periféricos neste sistema é, muitas vezes, um subproduto da aplicação da “lei”.
O caso do menino expõe ainda o fracasso do Estado. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que o Estado, a sociedade e a família devem assegurar direitos básicos a crianças e adolescentes. Para mães das periferias, contudo, essa promessa de proteção muitas vezes se converte em uma cruel decepção.
A perda de um filho empurra estas mães para uma luta constante. Para Beatriz, a mãe de Ryan, é ainda mais dolorosa, pois se soma à morte do marido, assassinado pela polícia há menos de um ano. Ela e tantas outras mães enfrentam uma dupla punição: perdem entes queridos para o próprio Estado e vêem negado o direito à verdade e à transparência. O acesso à justiça, que deveria ser um direito básico, lhes é negado.
A violência sistemática da PM nas periferias desrespeita o ECA, tratando crianças e adolescentes como ‘inimigos’ em vez de cidadãos
A vida de Ryan durou apenas quatro anos — ou 48 meses. Ele deveria estar desenvolvendo suas habilidades motoras e cognitivas, formando amizades, explorando o mundo, encantando-se com histórias e brincadeiras. Durou também o mesmo tempo de um mandato político. A violência do Estado não se dá apenas pelas armas, mas pela assinatura invisível que define quem deve ser protegido e quem deve ser silenciado.
O Brasil, com seus índices alarmantes de violência estatal, força as mães negras e periféricas a transformar a dor em luta por vida, dignidade e justiça. Mesmo carregando o fardo da perda, elas persistem para que a lembrança dos seus não seja apagada. Adoecem física e emocionalmente, mas seguem firmes para que a memória de seus filhos não desapareça na impunidade. Esse combate cobra um alto preço: muitas não veem a justiça chegar antes de suas próprias vidas serem consumidas pelo desgaste.
A música Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais MC’s, traz um retrato desta realidade: “2 de novembro era Finados / eu parei em frente ao São Luís do outro lado / E durante uma meia hora olhei um por um / e o que todas as senhoras tinham em comum / A roupa humilde, a pele escura / o rosto abatido pela vida dura / colocando flores sobre a sepultura (‘podia ser a minha mãe’) / Que loucura”.
A pergunta permanece: quem se importa com essa luta?
Quem se importa com o filho fuzilado de Beatriz?
Quem se importa?
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