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Roda presa

O programa do governo tirou o setor do marasmo, mas os juros aberrantes dinamitam o alcance da iniciativa

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Metas. Até 2026, 500 mil unidades do Minha Casa, Minha Vida serão equipadas com painéis solares. Um terço dos carros elétricos terão baterias nacionais em 2033 – Imagem: GOVSP e BYD
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Os resultados do terceiro trimestre mostram um avanço da indústria, mas o embate entre a nova política industrial e a velha política monetária segue acirrado, com clara superioridade da última. O setor cresceu 1,6% no período, mas a taxa de juros, que deveria ser de 8,4%, segundo cálculo da Confederação Nacional da Indústria, chegou a 11,25% na quarta-feira 6, após a última reunião do Comitê de Política Monetária, o Copom.

Os avanços possibilitados pelo programa Nova Indústria Brasil (NIB) são inegáveis, mas ainda não indicam uma mudança estrutural do setor capaz de resultar em um grande efeito no PIB, apontam economistas. A recuperação dos investimentos depende, segundo a Fiesp, de um “balanço de forças”. Algumas políticas adotadas pelo governo podem reforçar a demanda, mas o novo ciclo de aumento da taxa de juros contribui para a piora das condições de acesso ao crédito, enfatiza a entidade, que projeta um crescimento de 2,9% da produção industrial neste ano, mas considera incerta a continuidade do ritmo de avanço em 2025.

A possibilidade de desaceleração sugere que a nova escalada dos juros ameaça quebrar a pedra fundamental da política econômica do atual governo, que é o relançamento da indústria em bases sustentáveis, em termos de financiamento, digitalização, uso de energias renováveis e atualização tecnológica. Um curto-circuito no crescimento industrial colocaria em risco a NIB em sua fase embrionária. Apesar da retomada dos investimentos, eles permanecem em patamar historicamente baixo, em torno de 17% do PIB. Para sustentar um crescimento perene de 3%, ainda insuficiente para o País caminhar rumo ao desenvolvimento, a taxa anual de investimento deveria ser de ao menos 20%.

A recuperação dos investimentos depende de um “balanço de forças”, pondera a Fiesp

Há fatores atenuantes, sublinha o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Os setores de bens duráveis, dinamizados pela queda dos juros entre agosto de 2023 e maio de 2024, devem ser prejudicados pela nova fase de elevação da Selic pelo Banco Central, mas algumas providências e situações podem reduzir os efeitos negativos iniciais do novo aperto da política monetária. É o caso, aponta o Iedi, do programa de depreciação superacelerada de bens de capital, da disponibilidade de linhas de financiamento do BNDES a ­custos mais competitivos, como aquelas para inovação e digitalização das empresas, e ainda do vigor do mercado de trabalho.

O economista Antônio Carlos Diegues Jr., professor do Instituto de Economia da Unicamp, ressalta que já foram praticadas taxas de juro bem mais elevadas que a atual, inclusive nos primeiros mandatos de Lula, e o setor industrial caminhava bem. Outro detalhe importante é a mudança, pelo Conselho Monetário Nacional, das regras para a emissão das Letras de Crédito Imobiliário, que agora deverão estar necessariamente vinculadas a novos projetos de investimento, alteração que reduziu a oferta desses títulos. “Há capital ávido demandando recursos nessa linha e existe espaço para um maior volume de debêntures de infraestrutura”, diz Diegues Jr.

As virtudes e as limitações da política industrial ficam claras na “Missão 3” do Nova Indústria Brasil, lançada na quarta-feira 30 pelo presidente Lula, que visa melhorar a qualidade de vida nas cidades ao integrar mobilidade sustentável, moradia, infraestrutura e saneamento básico. Uma das metas é contratar 2 milhões de moradias pelo programa Minha Casa, Minha Vida, dos quais 500 mil com painéis solares, até 2026. Do total de 1,6 trilhão em investimentos, 75% serão provenientes do setor privado. Uma demonstração de um fenômeno econômico sempre negado pelo neoliberalismo, de o investimento do Estado ser crucial para desencadear o investimento privado. Outro objetivo são as ações dirigidas à produção de veículos elétricos. Entre os projetos da iniciativa privada, destaca-se o da WEG, uma das raras empresas brasileiras de alta tecnologia, que já anunciou investimentos para produzir baterias elétricas no Brasil, com aporte inicial de 100 milhões de reais. A meta do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial é ter, até 2026, ao menos 3% dos veículos elétricos brasileiros com baterias nacionais e 33% até 2033.

Tendências. Melhoraram as perspectivas para o setor de bens de capital. Guardião dos juros de dois dígitos, o Banco Central não quer saber dos alertas da CNI – Imagem: Leonardo Sá/Agência Senado e BYD

Uma das limitações básicas mais evidentes do PAC original, lançado em 2007, era a insuficiência e baixa qualidade dos projetos, motivo relevante para o adiamento ou paralisia dos investimentos. Isto foi superado, ao menos em parte. “Os projetos de infraestrutura estão mais bem estruturados, com matrizes de risco mais equilibradas, deixando claro o que é de responsabilidade de cada parte”, ressalta Roberto Guimarães, diretor de Planejamento e Economia da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base, a Abdib. Há menos assimetria de informações entre poderes concedentes, estruturadores e investidores, acrescenta Guimarães. Além disso, os trabalhos de estruturação feitos por BNDES, Caixa, Banco Interamericano de Desenvolvimento e consultorias privadas estão cada vez melhores.

O problema principal para a Missão 3, e para o Nova Indústria Brasil como um todo, são os juros elevados, que inibem os investimentos de duas formas, segundo o diretor da Abdib. Em primeiro lugar, o investidor pode preferir manter seus recursos aplicados em títulos de renda fixa, que pagam juros elevados e sem risco, do que aplicá-los em projetos de infraestrutura que carregam riscos em relação a demanda, custos, licenciamento ambiental e execução de obras, e apresentam margens de rentabilidade apertadas. Além disso, com juros elevados, a rentabilidade do projeto pode cair a ponto de deixá-lo economicamente inviável.

Guimarães destaca, entre os desafios, a necessidade de fortalecer, nos aspectos técnico e orçamentário, as agências reguladoras, um ativo de Estado com ação independente que contribui para a atração dos investimentos privados. Sobressai também a necessidade de avançar com a pauta legislativa da infraestrutura, como os projetos que tratam do licenciamento ambiental, regras para concessões, crédito de carbono, mobilidade urbana e regulação do setor elétrico, entre outros.

Investimentos privados correspondem a 75% do 1,6 trilhão de reais previsto para a terceira missão do programa Nova Indústria Brasil

Quanto ao dinamismo, a nova política industrial vai bem, mas a transformação estrutural é o maior desafio, ressalta Diegues Jr. Os recursos envolvidos não são tão volumosos como podem parecer, se for considerada a necessidade de novos financiamentos. O 1,6 trilhão destinado à Missão 3 inclui o conjunto dos investimentos, levando em consideração o setor privado e a lógica do crescimento e da expansão do mercado imobiliário, o investimento em infraestrutura mais tradicional, que já anda sozinho na economia brasileira. “É preciso potencializar a dimensão da transformação estrutural via bancos públicos, Embrapii e ­Finep. Já existem diversos instrumentos, alguns deles casados com o Mover. Talvez avançar nos recursos para essa área no BNDES e nas exigências de adoção de determinadas tecnologias, nos financiamentos liberados pela Caixa, e alguns incentivos tributários para demanda, para se alcançar uma infraestrutura mais eficiente, mais verde e mais digital. Esses são os principais desafios”, ressalta Diegues Jr. O Mover é um programa voltado para apoiar a descarbonização, o desenvolvimento tecnológico e a competitividade dos veículos brasileiros.

O economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp, vê méritos na NIB, mas faz ressalvas. Uma parte importante do volume de investimentos e dessas iniciativas não é conduzida por uma política industrial efetiva. Trata-se de uma compilação de iniciativas que já estavam em curso e aconteceriam independentemente de o governo apoiar ou não. “O governo perdeu força, e ­continuará nessa situação enquanto não houver algum tipo de alívio fiscal, um arranjo que permita uma flexibilidade do Estado. Até lá, fica-se administrando migalhas e, portanto, as condições para a neoindustrialização são tímidas e insuficientes”, sublinha o professor. Há aspectos positivos, como o fato de 80% dos setores estarem crescendo, inclusive os de bens de capital e automobilístico, que têm maior complexidade e bons empregos.

Os investimentos em infraestrutura parecem menos relevantes na comparação com os do PAC, mas há um conjunto de outros segmentos que estão ganhando importância, como a transição energética. Não serão suficientes ainda para uma transformação do Brasil em líder em setores industriais relevantes, mas possivelmente produzirão efeitos que possibilitem uma estabilidade maior para a indústria. A trajetória de crescimento da indústria brasileira está muito abaixo do patamar de produção física de 2014 e início de 2015, completa Ruas. •

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Roda presa’

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