Cultura
Uma história do Brasil
‘Ainda Estou Aqui’, a volta de Walter Salles à ficção depois de um hiato de 12 anos, é o filme mais triste de sua carreira


Em certo momento de Ainda Estou Aqui, a filha discute com a mãe o conteúdo de uma carta. A cena, possivelmente não de propósito, remete a Central do Brasil (1998), no instante que o garoto interpretado por Vinicius de Oliveira interpela a escrevedora vivida por Fernanda Montenegro sobre a carta da mãe dele. Os dois filmes de Walter Salles têm em comum o estopim dramático: a busca por uma figura paterna sobre a qual pouco ou nada se sabe e cujo desaparecimento é envolto em mistérios e mal-entendidos.
A diferença está no tipo de acerto de contas tratado em cada filme. No trabalho mais antigo, Salles propunha um mergulho interior adentro para refletir sobre o Brasil profundo. Em Ainda Estou Aqui, a investigação, também feita na chave do melodrama, recai sobre as feridas físicas e psicológicas causadas pela violência institucional da ditadura.
O desejo de adaptar o livro de memórias de Marcelo Rubens Paiva veio assim que Walter Salles o leu e viu desprender-se daquelas páginas a figura de Eunice Paiva, mãe do escritor: “Ao longo de sua autodescoberta na escrita do livro, ele (Marcelo) constata que a mãe foi a personagem central de toda a história”.
Após lotar pré-estreias e viralizar na internet, o longa-metragem chega a 450 cinemas cercado de expectativa
Salles não dirigia um longa-metragem de ficção desde 2012, quando lançou a produção internacional Na Estrada. “Me perguntam por que demorei 12 anos para fazer outro filme e eu respondo que não é todo dia que surge um livro extraordinário como Ainda Estou Aqui.”
O novo filme é ainda a volta de Salles ao Brasil passados 16 anos desde Linha de Passe (2008), que rendeu a Sandra Corveloni o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Nesse retorno, ele decide condensar a estrutura digressiva, personalista e memorial do livro de Marcelo Rubens Paiva numa narrativa diretamente fixada em Eunice, interpretada por Fernanda Torres, e nos efeitos da ditadura sobre uma família bem estruturada do Rio de Janeiro de 1971.
Para isso, convocou a dupla de roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega e deu a eles a missão de burilar uma personagem real para ser o centro nervoso de uma tragédia tão pessoal quanto representativa do estado de exceção e violência que o País atravessava. Durante as filmagens, algumas falas foram reescritas com a ajuda da família Paiva.
Ainda Estou Aqui é a obra de Walter Salles que mais se detém sobre a história do Brasil. Ainda que Eunice conduza a narrativa, o filme é explícito em amplificar as movimentações da personagem para dar um sentido de alerta sobre os horrores de um regime cujo método de ação era, literalmente, desaparecer com pessoas contrárias ao seu funcionamento.
DNA. Central do Brasil foi o último brasileiro indicado ao Oscar de Filme Internacional – Imagem: Paula Prandini
No primeiro terço, o enredo segue o cotidiano solar e à beira-mar da família Paiva no Leblon, entre as brincadeiras dos cinco filhos do casal, a relação afetiva bem estabelecida e os rumores de que coisas sinistras aconteciam em âmbito político – ex-deputado federal, o engenheiro Rubens Paiva, vivido por Selton Mello, estava atento às movimentações do País. E eis que, numa manhã de janeiro, oficiais do governo batem à porta de sua casa e ele é levado para interrogatório. Sob o olhar de Eunice, ele entra escoltado em um carro para nunca mais voltar.
A partir do desaparecimento, a atmosfera de Ainda Estou Aqui modifica-se. As coisas sinistras que só apareciam na televisão, entre um e outro momento do cotidiano familiar, passam a trespassar cada uma daquelas vidas.
Eunice e uma de suas filhas também são levadas pelos militares, mas liberadas dias depois. Ela inicia então uma busca incessante e frustrada por notícias do marido, enquanto tenta cuidar de cinco filhos e administrar a casa sem ter acesso aos recursos financeiros dele, já que não consegue provar que Rubens foi sequestrado ou morto. Aos olhos da burocracia, é como se ele tivesse saído de casa sem dar notícias.
Uma das ideias principais de Ainda Estou Aqui é, justamente, a de que regimes ditatoriais têm por princípio sumir com as pessoas não só de maneira física, mas simbólica, ao subtraí-las do entorno social como se apenas tivessem evaporado.
O começo de tudo. O desejo de adaptar para o cinema
as memórias narradas por Marcelo Rubens Paiva surgiu assim que o cineasta leu
o livro, lançado em 2015
As filmagens seguiram a ordem cronológica do roteiro, o que significa que, quando Selton Mello encena o momento em que é levado pelos agentes, ele estava, de fato, se despedindo da produção. “A gente deu-se conta de que não teria mais o Selton entre nós no set, o que foi uma maneira do Walter incorporar ao nosso trabalho a ideia de uma pessoa que não vai mais voltar”, relembra Fernanda Torres. Selton completa: “Minha missão era iluminar a primeira parte do filme, para então vir o efeito dela quando o Rubens sai de cena”.
Ainda Estou Aqui acaba por ser uma narrativa mais sobre a busca pelo luto do que pela sobrevivência, pois muito rapidamente se constata que Rubens Paiva foi assassinado nos porões da ditadura militar. Eunice assume a missão de oficializar a perda do marido. Salles filma essa jornada com elegância e austeridade, fixado na interpretação a um só tempo intensa e sutil de Fernanda Torres.
No controle emocional da história, o diretor aperta as teclas certas de elementos como montagem (que coube a Affonso Gonçalves, montador de Democracia em Vertigem), trilha sonora e direção de arte e faz o filme mais triste e sombrio de sua carreira.
O registro agridoce da trajetória de Eunice Paiva, que virou advogada referência em causas sociais e direitos indígenas e morreu em 2018 aos 86 anos, segue uma brasileira em busca de pedaços de vivências esmigalhadas por um Estado que escolhe quem vive, quem some e quem morre. •
A GENEALOGIA DE UM GRANDE PROJETO
Ainda Estou Aqui reúne desde velhos colaboradores brasileiros de Walter Salles até prestigiosas empresas internacionais de cinema
por Ana Paula Sousa
Tapete vermelho. Selton Melo, Fernanda Torres e Walter Salles se emocionaram com a recepção ao filme no Festival de Veneza – Imagem: Redes Sociais/Festival de Veneza
Em 1999, o senador Francelino Pereira citou as conquistas internacionais de Central do Brasil para defender, no Senado, a importância da cultura e do cinema para o País. Naquele momento, o setor cinematográfico pedia a criação de um órgão público que pudesse fortalecê-lo e o prestígio do filme foi usado como uma “prova” de que o investimento valeria a pena.
Central do Brasil ganhou o Urso de Ouro e o Urso de Prata – de melhor atriz, para Fernanda Montenegro – no Festival de Berlim e foi indicado ao Oscar de Filme Internacional. Passados 26 anos, recaem de novo sobre Walter Salles as esperanças não só de uma indicação ao Oscar, mas de uma boa bilheteria para um filme brasileiro – feito que tem sido raro desde a pandemia.
Após esgotar ingressos em pré-estreias e viralizar na internet, Ainda Estou Aqui passará agora pela prova de fogo do público. O filme foi lançado em mais de 450 cinemas na quinta-feira 7, cercado da expectativa.
“Tivemos muita demanda dos exibidores, inclusive de cidades pequenas”, diz André Sala, diretor-geral da distribuidora Sony Pictures. “A demanda também é percebida no meio digital, e notamos um interesse muito grande da parte dos jovens. O filme furou a bolha do cinema de arte e parece conversar com diversos públicos.”
A Sony foi a principal distribuidora de filmes brasileiros na década de 1990 e o executivo não nega que este lançamento aguça a vontade da empresa de voltar a trabalhar mais com o cinema nacional e se reaproximar de seu próprio passado.
É que, no fundo, não é apenas a trajetória de Walter Salles que Ainda Estou Aqui condensa. Por trás desse projeto estão pessoas e empresas há muito tempo ligadas ao diretor e ao cinema brasileiro.
Umas delas é Maria Carlota Bruno, que entrou na VideoFilmes, a produtora dos irmãos Walter e João Moreira Salles, no início da produção de A Grande Arte (1989), primeiro longa-metragem de ficção de Walter. Inicialmente assistente pessoal do diretor, ela assumiu a direção executiva da empresa em 2011 e é produtora de Ainda Estou Aqui.
“Só no roteiro, foram sete anos de trabalho. Também levamos muito tempo, por exemplo, buscando a casa onde seria filmado – a casa, afinal de contas, é um personagem”, descreve ela, antes de detalhar a rigorosa pesquisa histórica feita com a ajuda da família Paiva, que dividiu com eles fotos, cartas e relatos.
Ao mesmo tempo que se trata de uma produção grande para os padrões brasileiros, a obra teve um quê de trabalho intimista. “O filme começa pequeno, com um set supercontrolado, em que não se podia usar celular e que, como em todos os filmes do Walter, não houve making of”, diz Carlota.
Outros antigos colaboradores presentes no projeto – sem falar nas duas Fernandas – são o diretor de arte Carlos Conti; a produtora associada Daniella Thomas; e a produtora francesa Martine de Clermont-Tonnerre, que atuou também em Central do Brasil.
O produtor que esteve ao lado de Carlota e Martine é Rodrigo Teixeira. Os coprodutores são Globoplay, Conspiração e Arte France Cinéma. A Library Pictures, dos EUA, também investiu no filme, que foi viabilizado sem recursos públicos brasileiros.
Teixeira, produtor de obras premiadas, tanto internacionais, como Me Chame Pelo Seu Nome, quanto brasileiras, como A Vida Invisível, trata a repercussão do longa-metragem como algo, de certa forma, esperado: “O Walter é um artista internacionalmente conhecido e um filme dele é automaticamente projetado para esse lugar. Acho que as chances de ser indicado ao Oscar são realmente altas”.
Na terça-feira 5, dia em que falou com CartaCapital, Teixeira viajaria para Los Angeles para realizar sessões do longa-metragem. O lançamento em circuito, nos EUA, pela Sony Classics, que também distribuiu Central do Brasil, acontecerá no início de 2025.
O frisson em torno de Ainda Estou Aqui explodiu depois do Festival de Veneza, de onde o filme saiu aplaudido, premiado e vendido para vários países. A assessora de imprensa Anna Luiza Muller, outra das pessoas que trabalham há anos com Salles, relata: “Lembro que, com Central do Brasil, quando voltamos de Berlim, o (distribuidor) Bruno Wainer, disse, brincando: ‘O dique está rompendo!’ As reações, desta vez, me fazem, sim, lembrar daquele momento”.
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
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