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Poder sonhar com uma pátria

Em um conjunto de ensaios autobiográficos, o palestino Mahmud Darwich reivindica o direito de existir

Poder sonhar com uma pátria
Poder sonhar com uma pátria
Referência. Darwich, morto em 2008, é considerado o “poeta nacional da Palestina”. Escreveu dezenas de livros e foi traduzido para mais de 40 idiomas – Imagem: Eamonn McCabe e Mahmud Hams/AFP
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O palestino errante caminha pelas trilhas da memória, do sonho e da história, recuperando lembranças da infância no vilarejo de ­Al-Birwe, na antiga Palestina sob o mandato britânico, em meados dos anos 1940.

Em sua aventura de menino, ele caminha até a cidade vizinha de Acre (Akka, em árabe), na região da Galileia, naquela época o lugar mais remoto que conhecia, em busca da mãe, que não o havia levado numa rápida viagem. Depois de percorrer um longo caminho, ele chega à cidade, mas, como já é noite, decide retornar ao vilarejo. Amedrontado com a escuridão, para à beira da estrada e um caminhoneiro o leva de volta para casa.

Essa “volta para casa” se tornaria, não muito tempo depois, matéria de sonho. Em 1948, sua família, para tentar escapar dos ataques das milícias sionistas, foi para o Líbano, em um campo de refugiados mantido pelas Nações Unidas. Quando a família constatou que a situação era definitiva e decidiu retornar clandestinamente a Al-Birwe, não havia mais casa. O vilarejo tinha sido destruído, e a terra onde o menino cresceu tinha sido tomada por outros: um assentamento judaico fora instalado ali.

Outras leis regiam aquele território, rebatizado sob as regras de um novo idioma, e o menino e sua família foram considerados infiltrados, sem cidadania plena. Na perda da pátria, restaram a ­ghurba (o sentimento de exílio, estrangeiridade), a indignação e os sonhos enraizados como árvores.

Ó palestino errante, ponha um fim a esse caos. […] Vá para outro lugar e nos deixe em paz, dizem os novos donos da terra. Aonde quer que eu vá, minha sombra torna-se um lugar, responde ele, recusando-se a acatar o apagamento identitário.

A afirmação da própria existência é o mote dos nove ensaios autobiográficos de Diário da Tristeza Comum, do “palestino errante” Mahmud Darwich, traduzido do árabe por Safa Jubran. Os relatos, escritos em 1973, combinam a crônica das vivências na Palestina ocupada com o lirismo da memória e a sagacidade das anedotas em tom de fábula para desvelar o que ficou soterrado sob os discursos históricos dominantes.

Darwich (1941-2008) é o poeta nacional da Palestina, o “palestino poeta” por excelência, fruto e vítima da história, como ele próprio diria em Da Presença da Ausência (Editora Tabla), uma de suas obras mais celebradas.

Diário da Tristeza Comum Mahmud Darwich. Tradução: Safa Jubran. Editora Tabla (176 págs., 67 reais) – Compre na Amazon

Proeminente no mundo árabe e traduzido para cerca de 40 idiomas, ­Darwich escreveu dezenas de livros de poesia e prosa, além de artigos e textos jornalísticos. Entre 1961 e 1967, chegou a ser detido cinco vezes em razão de ativa militância. Algumas passagens de Diário da ­Tristeza Comum fazem alusão aos ­períodos em que passou na prisão israelense.

Quando escreveu esse conjunto de ensaios, cuja linguagem se equilibra entre o testemunho e a reflexão crítica, ­Darwich estava no exílio, entre Moscou, Cairo e Beirute. Após quase três décadas ­vivendo como “cidadão árabe em Israel”, foi proibido de retornar por ter aderido à Organização de Libertação da Palestina (OLP), em 1973.

Anos mais tarde, também precisou deixar o Líbano por conta da invasão israelense ao país, em 1982. Morou no Chipre, na Tunísia, na França e um breve período na Jordânia. Em 1996, recebeu permissão de voltar a Israel para assistir ao funeral de um amigo escritor e, em seguida, teve seu pedido de residência em ­Ramallah, na Cisjordânia, aceito.

Nos ensaios, Darwich reivindica o direito à tristeza, companhia constante dos que se sabem desterrados e, por isso, condenados a uma errância compulsória. A tristeza, no entanto, não aparece como resignação, e sim como um ato de insubmissão ao esmorecimento tanto da memória coletiva quanto da crença em uma pátria palestina de fato.

Passadas cinco décadas, as questões debatidas por Darwich mantêm-se ­atuais. No impressionante ensaio ­Silêncio por Gaza, ele exalta a dignidade e a resistência natas não só dos palestinos que ali vivem, mas também da própria terra.

“E Gaza não é a mais polida das cidades nem a maior. Mas ela equivale à história de uma nação, porque é a mais repulsiva entre nós aos olhos do inimigo – a mais pobre, a mais desesperada e a mais feroz”, escreve, em sua elegia premonitória. “Porque é um pesadelo. Porque são laranjas minadas, crianças sem infância, velhos sem velhice e mulheres sem desejos.”

Em outro relato, parece lançar ao mundo uma indagação cuja vigência histórica permanece: “O peso da questão palestina é maior do que o que qualquer ombro pode suportar. Então por que razão deveríamos carregá-lo sozinhos?” •

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Poder sonhar com uma pátria’

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