Política
Sonhar é político
Experiência com projeto de habitação popular mostra caminhos para “encantar” a sociedade


Quem escuta pela primeira vez os pilares do jogo Oásis pode sentir estranhamento (e até mesmo aversão) à ferramenta para condução de grandes projetos de desenvolvimento comunitário em territórios que convivem com um turbilhão de desafios e restrições de direitos fundamentais. Como uma dinâmica que convida a olhar para uma “cultura de abundância” e leva os potenciais de uma comunidade para um tabuleiro de jogo pode ser validada como ferramenta técnica de impacto?
Vivemos em um mundo marcado por uma cruzada pelo racionalismo. É preciso combater a desinformação e destacar números que denunciam as desigualdades, além de acumular provas e criar evidências racionais de que estamos em colapso. O que não propõe objetividade, por essa perspectiva, não pode fundamentar projetos voltados ao comum. Alguns diriam que seria imoral pedir investimentos públicos a partir do que é fantástico.
Mas desde que o mundo é mundo, as histórias e os mitos aguçam a curiosidade humana em direção a descobertas que provocam grandes revoluções. Histórias que se retroalimentam a partir da necessidade de trazer mais sentido e dignidade à existência. Fabulações nos levaram de perguntas absurdas a respostas extraordinárias, como a criação da vacina ou a descoberta da eletricidade.
Em entrevista à BBC Brasil, o pesquisador italiano radicado no Brasil Paolo Demuru traz mais uma camada ao apego que temos por histórias: a vontade de pertencer e de sair da banalidade dos nossos dias. Autor do livro Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias de Conspiração, Demuru destaca que a direita radical tem conquistado uma legião de eleitores, no Brasil e no mundo, a partir da oferta de teorias de conspiração e de correntes de desinformação marcadas pela maravilha, em um mundo no qual, segundo ele, “o maravilhoso está em falta”.
Concordamos em parte. Nos quase 30 anos de aplicação da metodologia Elos, da qual o jogo Oásis deriva, jogo esse que também obteve um reconhecimento de tecnologia social para políticas públicas, pela Fundação Banco do Brasil, de fato reconhecemos um desejo de pertencimento naqueles que topam embarcar no processo pelos territórios que passamos no Brasil e no mundo afora. Ao contrário do que Demuru diz na entrevista e escreve no seu livro, ainda não cruzamos, nos nossos projetos, com gente presa a uma dinâmica de mediocridade, em que vislumbraria nas fantasias da desinformação um caminho para se libertar e se sentir protagonista.
Vimos cidadãos presos a um sistema de vida e de restrição de direitos que ameaçam a sua dignidade humana, e que, ao receber o convite para o jogo, são convidadas a participar da transformação da própria realidade. E o convite à participação, de fato, é uma subversão que converge aos exemplos mencionados por Demuru em sua obra como algo decisivo para pactuar a fidelidade dos indivíduos a personagens políticos que promovem o caos do ódio e da desinformação.
No nosso caso, para seguir as regras do jogo é preciso passar por etapas que convidam ao afeto, à escuta e à coletividade. O pertencimento só é possível ao aceitar o comum, também divergente da ânsia pelo ódio e pelo individualismo que estimulam o sucesso da direita radical. São fatores que de fato funcionam na receita adotada pelos extremistas, mas queremos destacar como o protagonismo e a oferta de sonhar são necessidades anteriores às emoções inflamadas e, portanto, podem ser mobilizadas para transformações positivas.
Em Lynnwood, na Costa Oeste dos EUA, a companhia de habitação social Hasco, sigla para Housing Authority of Snohomish County, buscava aprovar uma lei de zoneamento que permitiria a construção do dobro de unidades habitacionais a preço mais popular daquelas então permitidas para duas de suas propriedades em determinado bairro da cidade.
O jogo Oásis é uma forma de engajar as comunidades na luta por uma vida mais digna
Nos Estados Unidos, não há um debate sobre o direito à moradia da mesma forma como estamos acostumados no Brasil, em que temos movimentos sociais históricos engajados no tema, além de políticas diversas que promovem projetos de habitação popular. Estamos acostumados a reconhecer o assunto como demanda pública e de interesse coletivo – e, mesmo a partir dessa perspectiva, ainda estamos muito aquém em relação ao tema –, enquanto os norte-americanos ainda se relacionam com a moradia como um objeto de consumo individual e privado.
Como resultado, temos uma sociedade que cultua a política do Nimby (Not in My Backyard – Não no Meu Quintal, na sigla em inglês). E que enxerga na habitação popular uma ameaça de aproximação indesejada com negros, latinos, imigrantes de maneira geral e outros grupos de baixa renda associados à ideia de desordem e degradação.
Apesar do cenário desafiador, implementamos uma metodologia de escuta ativa e qualificada entre públicos e organizações implicadas na questão da habitação de interesse social na região e, em especial, uma abertura de diálogo com quem mantinha uma visão negativa sobre a proposta. No fim do processo, conseguimos a articulação necessária para as propostas de mudança de zoneamento serem aprovadas no segundo semestre de 2023.
Após esse processo, iniciamos, em 2024, uma nova etapa: levamos nosso jogo para a região, com o objetivo de consolidar a comunidade engajada na construção da luta do acesso à moradia como um direito inegociável. Conduzimos o nosso tabuleiro no decorrer de outubro, às vésperas das eleições dos EUA, em que a redução da taxa de juros para o financiamento da casa é um dos principais sonhos dos eleitores e, pesquisas diversas indicam, pode pesar na escolha do voto.
Esta experiência mais recente só reforça algo que sabemos há quase 30 anos: o direito ao sonhar é político, e urgente. É um processo que nos permite voltar a acreditar no comum e em processos restaurativos que não só consolidam laços, necessários à nossa natureza social como seres humanos, mas também não nos deixam banalizar a luta em prol do que é necessário para uma vida digna, o que nos leva a uma atenção enérgica e constante ao combate às desigualdades. •
Agnes Sofia Guimarães, jornalista e pesquisadora, mestra em Comunicação pela Unesp e doutoranda em Linguística Aplicada pela Unicamp. É jornalista do Instituto Elos e pesquisadora de divulgação científica do Afrocebrap.
Rodrigo Rubido é arquiteto, educador, cofundador e diretor do Instituto Elos. Há 25 anos trabalha com desenvolvimento pessoal e comunitário e pratica colaboração intercultural para a formação de lideranças no programa Guerreiros Sem Armas, que já envolveu milhares de pessoas de 58 países.
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
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