Mundo
Inimigo de si mesmo
Nem a oposição golpista conseguiu produzir o estrago do conflito entre Evo Morales e Luis Arce, seu antigo pupilo


Durante 13 anos, entre 2006 e 2019, o território e os traços da oposição na Bolívia eram bem definidos. Os brancos descendentes de espanhóis fizeram de Santa Cruz de la Sierra, situada nas planícies a leste do país, a capital do golpismo, a antítese de La Paz, dominada pelos nativos. Dois empresários personificavam a “resistência” dos herdeiros do colonialismo à eleição do líder sindical Evo Morales, o primeiro aimará a ocupar o Palácio Quemado: Branko Marinković, que se mudou para os Estados Unidos em 2009 depois de liderar protestos violentos na cidade, e o performático Luis Fernando “Macho” Camacho, sempre armado com uma Bíblia.
A despeito do apoio entusiasmado da direita internacional, da truculência interna e de muito dinheiro, a conspiração de Santa Cruz só deu certo em 2019 e por um breve período. O golpe germinado nas delegacias de polícia, resultado da insistência de Morales em concorrer a um quarto mandato consecutivo, levou ao comando do país uma marionete, a senadora Jeanine Añez. Marinković seria nomeado ministro da Economia e Camacho transitaria como uma espécie de Rasputin. Um ano depois, chamados a escolher o próprio futuro, os bolivianos disseram não à quartelada. Na primeira eleição presidencial após a tomada de poder pelo consórcio civil-militar, os eleitores consagraram nas urnas Luis Arce, pupilo de Morales, que havia sido obrigado a se exilar na Argentina, e símbolo da renovação do MAS, a legenda socialista predominante na política local. Añez e Camacho acabariam presos, enquanto Marinković vaga como turista nos eventos da extrema-direita mundo afora.
A punição aos golpistas deveria ter iniciado um novo ciclo de estabilidade e prosperidade na Bolívia. Estamos, porém, na América Latina e, aqui, o realismo “fantástico” é, na verdade, só realismo. Os últimos meses provaram que a crise política no Altiplano independe da oposição cruceña. Mais. Se ficar quieta, não atrapalhar, a “elite branca” talvez veja sua vontade de desmoralizar as lideranças e os movimentos indígenas ser realizada sem mover uma palha. Nas últimas semanas, a disputa fratricida entre os aliados de Arce e os apoiadores de Morales alcançou outro nível de violência e complexidade, enfrentamento com potencial para desaguar em uma guerra civil. Na sexta-feira 1°, “evistas” mantiveram em cárcere cerca de 20 militares em um quartel em Villa Tunari, reduto político e sindical do ex-presidente. A ocupação seguiu-se ao bloqueio de estradas iniciado em meados de setembro. O governo Arce recusa-se a negociar com os manifestantes enquanto as vias não forem liberadas. Houve confrontos com a polícia. “A paciência e a tolerância têm limites, razão pela qual o Estado e o governo, por meio de suas instituições, estavam sob a obrigação constitucional e legal de garantir a livre circulação”, afirmou o ministro da Defesa, Edmundo Novillo.
Morales e seus seguidores acusam Arce, o ex-pupilo, de perseguição política. O ex-presidente, que tenta na Justiça garantir o direito a disputar uma nova eleição, é alvo de um processo por abuso de menores, exploração e tráfico de pessoas. Segundo o Ministério Público de Tajira, o líder cocaleiro manteve relações com uma menina de 15 anos, com quem teve uma filha em 2016. O ex-presidente recusa-se a depor no processo. O primeiro pedido de prisão solicitado pelos procuradores foi rejeitado pela juíza do caso, mas tem havido interferência do Palácio Quemados. César Siles, ministro da Justiça, lembrou o direito do MP de impor a detenção caso o depoimento não seja realizado. “Qualquer ordem de citação afirma em seu texto que, em caso de não comparecimento, será expedido o mandado de prisão.”
Apoiadores do ex-presidente querem evitar sua prisão em um processo por abuso de uma menor
Alvo de um atentado em 27 de outubro, quando sua comitiva foi atingida por 14 tiros, Morales acusa Arce de tramar a sua morte e anunciou a intenção de recorrer à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Embora o ex-presidente tenha publicado nas redes sociais um vídeo do momento dos disparos, o ministro do Interior, Eduardo del Castillo, chamou a situação de “teatro” e disse que o comboio atingido desobedeceu à ordem policial de reduzir a velocidade em um bloqueio na estrada durante uma operação de combate ao tráfico de drogas. “Em vez de reduzir a velocidade, aumentam, sacam armas de fogo, disparam. Senhor Morales, ninguém acredita no teatro que você armou, mas terá de responder perante a Justiça pelo crime de tentativa de assassinato”, ameaçou Del Castillo.
A escalada continua. Na sexta-feira 1°, por meio de uma carta, o ex-presidente “alertou” o governo para a possibilidade de um levante popular e militar caso venha a ser preso. E não poupou o antigo aliado. “Ninguém imaginaria que os últimos meses do seu governo seriam tão sombrios e lamentáveis. Menos ainda que você acabasse por autorizar a violência contra aqueles que o levaram ao poder com seu voto, sua luta e seu sangue”, anotou Morales. “Você imaginou que chegaria a este ponto? Ou que autorizaria a mesma intervenção policial e militar que Jeanine Añez autorizou? Ou que mancharia as mãos com o sangue dos índios, dos pobres e dos camponeses que prometeu defender?”
Caso não seja preso no processo por abuso, Morales tem pela frente a complicada missão de mobilizar a sociedade a ponto de obrigar o Tribunal Constitucional Plurinacional a alterar a interpretação sobre o direito à reeleição. No ano passado, o TCP decidiu que presidentes e vices só podem concorrer a um segundo mandato, consecutivo ou não, uma única vez. A regra estende-se ao passado. O líder sindical definiu o despacho da Corte como “conspiração” e acusou Arce de estar a serviço dos interesses dos Estados Unidos. O primeiro turno das presidenciais na Bolívia acontece em setembro de 2025. •
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Inimigo de si mesmo’
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