

Opinião
Maternidade adiada
Embora a fertilização in vitro ofereça a oportunidade de gestação para milhares de mulheres, o avanço da idade ainda é um empecilho importante


Na década de 1960, cheguei a fazer 20 partos num plantão de 24 horas. Foi num estágio na antiga Cruzada Pró-Infância, hoje Hospital Pérola Byington. A marca só não foi recorde entre os estudantes-plantonistas, porque um colega conseguiu fazer 22.
Numa época em que a taxa de natalidade brasileira era de seis filhos por mulher e que milhares de nordestinos migravam para São Paulo em busca de trabalho, o movimento nas maternidades públicas era intenso.
Muitas vezes, passávamos as noites inteiras sem dormir um minuto. As mulheres vinham da periferia, em que as casas se amontoavam sem luz, água encanada ou saneamento. Quando começavam as dores do parto não era fácil conseguir transporte. Partos no banco de trás de táxis e de viaturas da polícia faziam parte da nossa rotina.
Uma vez, atendi uma parturiente que estava dando à luz em um ônibus cujo motorista desviou o caminho para a porta do hospital. Os homens tinham descido e aguardavam na calçada. Um grupo de mulheres a caminho de um culto evangélico orava e abanava a paciente. Foi preciso falar firme para que me deixassem passar e completar o parto que já acontecia espontaneamente.
Quando saí com o bebê enrolado num campo cirúrgico, ouvi tantos “Deus seja louvado”, tantos “Deus abençoe o doutor” que considerei perdoados todos os meus pecados porventura cometidos.
Naquela época, aprendíamos que a idade ideal para o parto era dos 18 aos 25 anos. Ao atendermos uma mulher de 26 anos ou mais que vinha para ter o primeiro filho, anotávamos na ficha médica: primigesta idosa.
Embora a gravidez na adolescência ainda seja um problema social muito grave entre os mais pobres, a mulher moderna procura retardar a gravidez por uma série de razões: dificuldades financeiras e de acesso à moradia, aspirações na carreira profissional, ausência de um parceiro e falta de apoio familiar, entre outros.
O tempo, no entanto, conspira contra concepções tardias. A capacidade de produção de óvulos (reserva ovariana) é limitada. No desenvolvimento embrionário, o feto é assexuado até a décima semana de gestação. Só a partir daí é que a formação das gônadas (testículos e ovários) irá diferenciá-los em feminino e masculino, devido à produção dos hormônios sexuais, testosterona, estrogênio, progesterona e outros.
Na fisiologia sexual feminina, os ovários produzem os folículos, estruturas microscópicas em que os óvulos ficarão protegidos enquanto amadurecem. Na vida embrionária, a futura menina tem milhões de folículos ovarianos, número que cai de tal forma que, ao nascer, restam cerca de 300 mil e, na menarca, início da vida fértil, terão sobrado perto de 200 mil. Aos 30 anos, somente 12% dos folículos presentes antes do nascimento terão sobrevivido.
Algo semelhante ocorre com os óvulos. Em uma mulher de 25 anos, existem, em média, cerca de 65 mil óvulos à espera do amadurecimento no interior dos folículos. Aos 35 anos, serão 16 mil; na menopausa, cerca de mil.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma em cada seis mulheres em idade reprodutiva não consegue engravidar, por motivos variados. Dentre eles estão transtornos ovarianos, obstrução das tubas, infertilidade masculina e a idade.
Com o passar dos anos, os óvulos correm mais risco de desenvolver defeitos celulares que causam abortamentos espontâneos. Entre os 20 e os 29 anos, eles ocorrem em 12% das gestações; aos 40 anos, em 25%; depois dos 45 anos, em 65% das vezes.
O advento da fertilização in vitro (FIV) ofereceu a oportunidade de gestação para milhares de mulheres que não conseguiam engravidar. Mas os índices de sucesso da fertilização a partir dos próprios óvulos também diminuem com a idade.
Nas mulheres com menos de 35 anos chegam a 40%; aos 41 anos, caem para 10%; aos 43 anos, ficam ao redor de 5%. Esses dados devem ser conhecidos pelas mulheres que pretendem adiar a gestação.
Como não existem métodos capazes de aumentar o número de folículos e de óvulos, é fundamental falar com o especialista para discutir e definir a melhor estratégia. Mulheres que desejam ter filhos, mas estão empenhadas nos estudos e na carreira profissional, aquelas que ainda não encontraram um homem que valha a pena, as que casaram com outras mulheres e as que vivem outros relacionamentos ditados pela diversidade do comportamento humano, precisam estar conscientes de que existe uma janela de fertilidade. E que ela tem duração limitada. •
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Maternidade adiada’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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