

Opinião
Fomos da santidade ao submundo
Política de alianças é coisa saudável. Mas é duvidoso normalizar o escatológico, e ainda trabalhar para ele


Esta CartaCapital produziu uma assombrosa reportagem de mecânica política: “Nem centrão, nem Bolsonaro: o verdadeiro vencedor das eleições é um bilionário”. É esse o jornalismo de que precisamos: ele mostra, no fino da bossa, os caminhos da grana. Bernstein and Woodward. Alll the President’s men. Do filme, encenado por Robert Redford nos anos 1970, ficou conhecida uma frase: “Follow the money”, ou seja, se queres captar as corrupções do processo, vás atrás do dinheiro, descubras o caminho percorrido por ele, extraia-lhe as digitais, anote o CPF das mãos que o contaram.
Mas há outra sentença soberba na ilustre mise-en-scène de Todos os homens do presidente. A certa altura do enredo, o informante de Carl Bernstein, escondido detrás de um pilar, no soturno estacionamento de um shopping vazio, dá-lhe o toque impaciente de sabedoria: “Amigo, pelamor, você está perdendo a visão de conjunto” [“Come on! You’re missing the big picture”]. Bernstein tinha as peças do Watergate diante de si mas, atento demais aos pequenos detalhes, falhava em montar o quadro.
É isto o que hoje ocorre com a esquerda no Brasil. Narcisicamente engolfada por suas narrativas velhas, acredita possuir uma tese analítica sobre o país e a direita: são todos “fascistas” e “farinha do mesmo saco”. Uau, que brilho!
Ora, fascistas até são, e isso não é pouco. porém, o quê mais? Acaso não há matizes? Parte da bolha gauche foi comida pela “Tese de Cérbero”: era uma eleição entre Boulos e as três cabeças da “besta” (Marçal, Nunes e Datena), todos na coleira de Bolsonaro, de um modo ou de outro.
É um sentimento forte, sem dúvida.
Esqueceram-se que mesmo as cabeças de Cérbero serviam a propósitos distintos, o que tampouco é pouco.
Tem sido porém usado para evitar as análises mais densas de uma sociedade complexa, demasiadamente complexa.
A situação se agrava com a perda de cabeças nos partidos e as dificuldades da pesquisa social universitária.
Não, senhoras e senhores. Transformação social não se faz pelo Partido Intelectual. Porém, todavia, contudo, sem análises novas estamos condenados ao nada.
O que mais apareceu em nossas timelines, desde o fragoroso domingo último?
Mais um vez, pululou o belíssimo texto do antrópologo Darcy Ribeiro dizendo que “suas derrotas foram suas vitórias”.
É poético, sem dúvida.
Tem sido porém empregado, nos últimos dias (semanas, meses, anos), no sentido de lavarem-se as mãos e, pior, converterem-se os desastres eleitorais em algo de positivo, fator de orgulho, gigantismo moral etc.
Daí, a pretensão final de Boulos. Homem de bom caráter, corajoso e atento por certo, não pode entretanto dizer que “devolveu a dignidade à esquerda”, dedicando-se a se apresentar como apenas um honesto moderado: “não fiz isso”, “nunca fiz aquilo”, “não falei mal da Fiesp”, “não foi bem assim”, “está fora de contexto”, “nunca fui preso”, “só ocupei imóveis vazios”.
O lance inicial da campanha já marcava a aceitação passiva do fenômeno religioso: seu marketing quis erigi-lo como santo, apelando aos corações da eucaristia, explorando uma epifania teatral e quase beata: quando sua generosa mãe entregou um sanduíche de queijo para um morador de rua, o pequeno Guilherme teria entendido o seu caminho de vida.
O lance final da campanha, a “live” do Marçal, foi a pá de cal inversa. “Live” or “dead”?
Política de alianças é coisa saudável. Mas é duvidoso normalizar o escatológico, e ainda trabalhar para ele.
Assim, no plano narrativo, fomos da santidade ao submundo, em poucas semanas, e abraçamos a cabeça mais feroz do monstrengo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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