Do Micro Ao Macro
Mente sã, bolso cheio
Zelar pela saúde mental dos funcionários não é benevolência, é investimento


O Brasil vive uma crise silenciosa e persistente no campo da saúde mental. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o País lidera o ranking internacional de transtornos de ansiedade, é o segundo das Américas com maior prevalência de depressão e o quinto do planeta. Cerca de 60% dos brasileiros relatam que o trabalho é uma das principais fontes de ansiedade e estresse. De acordo com a International Stress Management Association, ocupamos o segundo lugar global em casos de Síndrome de Burnout, doença que atinge perto de 30% dos trabalhadores.
A crise silenciosa revela um problema sistêmico que afeta tanto o bem-estar dos indivíduos quanto o desempenho financeiro das empresas. Em 2023, o Instituto Nacional do Seguro Social registrou 288 mil afastamentos de trabalhadores por questões de saúde mental, aumento de 38% em relação ao ano anterior. A alta reflete diretamente nos custos das companhIas, que hoje destinam de 14% a 20% da folha de pagamento para planos de saúde, peso crescente devido à elevação dos diagnósticos das doenças mentais e dos custos com saúde suplementar.
Tatiana Pimenta, CEO da Vittude, plataforma de saúde mental, tem sido uma voz importante nesse debate. Sua trajetória pessoal e profissional traduz o impacto da saúde mental no ambiente de trabalho. Pimenta fundou a Vittude após enfrentar seus próprios desafios com depressão e dificuldades no acesso a profissionais de qualidade. A empresa, criada inicialmente para conectar psicólogos a pacientes, evoluiu para oferecer soluções voltadas ao setor corporativo, com foco na prevenção e no tratamento dos transtornos mentais. “Percebi que muitas das dificuldades que enfrentei poderiam ser resolvidas com um sistema mais organizado e acessível. Desde o início, nosso objetivo foi democratizar o acesso à saúde mental, especialmente em regiões onde há carência de profissionais.” A Vittude oferece programas que variam entre 300 e 1,5 mil reais anuais por funcionário, a depender do nível de acompanhamento e da necessidade de cada estabelecimento. “Não se trata apenas de oferecer terapia, mas de criar um ambiente de trabalho mais saudável, no qual o sofrimento seja identificado nas fases iniciais”, resume.
Lucro. Tatiana Pimenta, da Vittude, ressalta os benefícios de se manter um ambiente saudável de trabalho – Imagem: Paulo Liebert
A pandemia reforçou a importância da saúde mental no ambiente corporativo, evidenciando a necessidade de um acompanhamento mais próximo dos trabalhadores. Durante esse período, muitos perceberam que o sofrimento não era isolado e que a solução não se restringia à terapia tradicional. As empresas, impulsionadas pela demanda crescente, começaram a adotar programas mais abrangentes, de diagnósticos precoces a ações de psicoeducação.
Apesar dos avanços, grande parte das organizações ainda trata a saúde mental como uma agenda secundária. O Anuário Saúde Mental nas Empresas 2024, elaborado pelo Instituto Philos Org, revela que houve uma queda no índice geral de preocupação das empresas com a temática. O índice caiu de 5,40 para 5,06 em comparação ao ano anterior, e indica que, com o fim da pandemia, a saúde mental voltou a perder espaço nas prioridades corporativas. “A saúde mental não pode ser encarada de forma sazonal. Ela deve ser parte estrutural das políticas empresariais”, observa Carlos Assis, fundador do Instituto Philos Org.
Marco recente é a revisão da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que passou a incluir a obrigatoriedade de identificar e gerenciar os riscos psicossociais no ambiente de trabalho. Publicada em agosto de 2023, a Norma, que entra em vigor em maio de 2025, exige das empresas a adoção de medidas para prevenir o adoecimento mental, desde a gestão da sobrecarga de trabalho até a criação de ambientes livres de assédio. Tatiana Pimenta, que participou das discussões sobre a regulamentação, destaca a importância dessa nova exigência: “Agora, as empresas terão de identificar os fatores de risco e atuar preventivamente, o que representa um avanço significativo. Não é apenas uma questão legal, mas uma mudança na forma como se deve enxergar o bem-estar dos trabalhadores”.
No ano passado, o afastamento de trabalhadores causado por distúrbios cresceu 38%
Além da nova NR-1, a Lei 14.831, conhecida como a Lei do Certificado de Empresa Promotora de Saúde Mental, traz um incentivo extra para as corporações. As empresas que implementarem práticas eficazes de promoção da saúde mental poderão receber um certificado, com validade de dois anos, que reconhece seus esforços. A certificação pode ser um diferencial competitivo, ao mesmo tempo que reforça o compromisso das organizações com o bem-estar de seus trabalhadores.
Apesar de as grandes empresas começarem a adotar medidas mais consistentes, o estudo do Instituto Philos mostra uma grande disparidade entre os setores. Enquanto o financeiro lidera as iniciativas de promoção da saúde mental, o agronegócio e a indústria de alimentos estão entre os mais mal avaliados. Em algumas áreas, os transtornos mentais representam 68% dos afastamentos. Muitas empresas resistem, no entanto, a conter de forma estruturada o problema, o que reflete em altos índices de afastamento e queda na produtividade. “As empresas que investem na saúde mental de seus trabalhadores cumprem sua obrigação e colhem resultados concretos. Um trabalhador que se sente apoiado e valorizado produz mais e se ausenta menos. O retorno sobre o investimento é evidente, tanto em termos financeiros quanto em qualidade de vida”, afirma Tatiana Pimenta.
No Brasil, as empresas que ainda não compreenderam o impacto da saúde mental em seus resultados financeiros precisam agir rapidamente. A pressão para atender às novas regulamentações e, ao mesmo tempo, à crescente conscientização dos trabalhadores sobre seus direitos faz com que o tema deixe de ser uma escolha e se torne uma necessidade. O futuro do ambiente corporativo está diretamente ligado ao cuidado com os funcionários. •
Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mente sã, bolso cheio’
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