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A trampa de Trump

A estratégia para contestar o resultado, caso o republicano perca a eleição

A trampa de Trump
A trampa de Trump
No comício no Madison Square Garden, o republicano reproduziu a estética nazista e voltou a prometer a deportação em massa dos imigrantes – Imagem: Angela Weiss/AFP
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Não há muitas dúvidas: Donald Trump se recusará a aceitar uma possível derrota na eleição presidencial dos Estados Unidos em 5 de novembro. O ex-presidente, empatado nas pesquisas com Kamala Harris, passou meses a preparar os apoiadores para acreditarem que a única maneira de perder seria por meio de fraude. “Se eu perder… vou lhes dizer uma coisa, isso é possível. Porque eles trapaceiam. Esta é a única maneira de perdermos, porque eles trapaceiam”, afirmou num comício em setembro.

Trump tem se recusado a dizer, por diversas vezes, se aceitará claramente o resultado da eleição. No máximo, afirmou que o fará se ele “for justo, legal e bom”. Por ter, até agora, escapado de qualquer responsabilização pelo ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, o republicano abraçou aqueles que atacaram violentamente o governo dos Estados Unidos em protesto contra o resultado da eleição de 2020, chamando-o de um “dia de amor”. JD Vance, seu atual companheiro de chapa, foi ainda mais direto. O senador de Ohio afirmou que não aceitaria certificar o resultado de quatro anos atrás. Durante o debate vice-presidencial no início deste mês, negou-se a admitir a derrota de Trump para Joe Biden. Mais tarde, declarou, de forma inequívoca, não acreditar que o parceiro tenha perdido em 2020.

Neste ano, os esforços da chapa de Trump para negar preventivamente o resultado em caso de derrota na eleição vão, porém, além da retórica. O empenho agora é sustentado por amplo apoio partidário e um enorme aparato jurídico, altamente organizado. “O esforço para tentar subverter o resultado é mais pensado, mais estratégico, mais organizado, mais coordenado do que em 2020”, avalia ­Sean ­Morales-Doyle, diretor do programa de direitos ao voto no Centro Brennan para Justiça.

Os republicanos pretendem semear a dúvida nos dias posteriores à votação e insuflar a desconfiança dos eleitores

Os republicanos estão preparados para apoiar as investidas de Trump. Quase 20% dos eleitores do partido acreditam que, caso o ex-presidente perca, deve declarar o resultado da eleição inválido, segundo pesquisa recente do ­Public ­Religion Research Institute (12% dos democratas disseram que Harris, que se comprometeu a aceitar os resultados, deve fazer o mesmo). Dezenas de cidadãos que contestaram a vitória de ­Biden na última disputa presidencial estão em órgãos locais onde têm poder sobre a certificação das apurações. Liderados por Cleta Mitchell, aliada de Trump que participou da tentativa de anular a eleição quatro anos atrás, os republicanos organizaram um grande esforço para monitorar juntas eleitorais, contestar eleitores e trabalhar em distritos eleitorais. Ao menos 35 autoridades que se recusaram a certificar eleições desde 2020 terão um papel na certificação do voto neste ano, conforme um relatório do grupo de vigilância Citizens for Responsibility and Ethics (Crew), em Washington.

O Comitê Nacional Republicano passou meses a mover ações judiciais com falsas denúncias de fraude. Segundo especialistas, não há chance de ganharem essas ações antes da eleição, muitas já foram rejeitadas pelos tribunais, mas o objetivo é gerar manchetes e dar a impressão de que há erros nas listas de eleitores. A campanha de Harris, advogados defensores dos direitos eleitorais e grupos de direitos civis se preparam para a possibilidade de um período pós-eleitoral caótico que poderá incluir uma enxurrada de ações judiciais em busca da invalidação das cédulas com o fim de alterar o resultado.

Embora haja poucas dúvidas de que Trump tentará contestar uma derrota eleitoral, os especialistas também têm quase certeza de que ele não terá êxito. Os juízes recusaram quase todos os 61 processos movidos pelo republicano para tentar anular os resultados de há quatro anos, e especialistas esperam que o façam novamente. Advogados e autoridades eleitorais também passaram os últimos 48 meses a aprender com o que aconteceu e estão preparados para ir rapidamente à Justiça ao primeiro sinal de perturbação. O mês seguinte ao dia da eleição poderá ser caótico e confuso, mas eles estão confiantes de que o legítimo vencedor será finalmente empossado. “A reação a essas tentativas também é mais coordenada e preparada. As autoridades eleitorais viram como é o manual dos negadores nas últimas eleições e sabem para o quê devem se preparar”, disse Morales-Doyle.

Para Trump, a invasão do Capitólio foi o “dia do amor”. O vice JD Vance recusa-se a admitir a derrota do companheiro de chapa nas eleições de 2020

Alegações de fraude

O esforço de Trump para contestar uma possível derrota provavelmente começará quando os votos forem contados após a eleição, na noite de 5 de novembro. Assim como em 2020, é provável que não haja um vencedor declarado de imediato, e os principais estados indecisos levem horas ou até dias para contar os votos. Quanto menor for a margem da eleição – e pode ser muito pequena –, maior o tempo para os meios de comunicação estarem suficientemente tranquilos para anunciar a vitória, o que pode aumentar a incerteza. Não há nada de incomum nesse atraso. Mas Trump pretende declarar que o voto contra ele é fraudado e que a demora na apuração é sinal de algo errado, informou a revista Rolling Stone em outubro. Essa declaração de fraude provavelmente será acompanhada por ações judiciais rápidas com alegações de irregularidades, apoiadas por depoimentos de eleitores que dizem ter visto movimento incomum nas urnas ou na contagem dos votos. Embora essas alegações provavelmente sejam desmascaradas, poderão alimentar a versão de que algo errado aconteceu em 2020.

O Comitê Nacional Republicano prevê como serão esses processos. Nos últimos meses, os advogados entraram com ações em estados indecisos, sob alegação de que existem mortos, não cidadãos e outros indivíduos não qualificados em suas listas de eleitores, e pediram uma revisão dos tribunais. Os juízes recusaram muitos desses processos. Em Michigan, estado indeciso, o CNR entrou com uma ação judicial em março com a tese de que 76 dos 83 condados (municípios) do estado tinham mais eleitores qualificados do que cidadãos qualificados para votar ou registros de eleitores em número “suspeitamente alto”. O comitê enviou um comunicado à imprensa, além do processo, no qual dizia que Michigan tinha “listas de eleitores infladas e imprecisas antes da eleição de 2024”, e o caso rendeu muitas notícias.

Autoridades de Michigan observaram que o comitê republicano não identificou um “único eleitor não qualificado registrado para votar em qualquer condado”. Um juiz federal rejeitou o caso em 22 de outubro, concluindo que o estado tinha procedimentos eficazes para remover eleitores (a lei federal exige um período de espera antes da retirada de um eleitor supostamente irregular).

“O esforço para tentar subverter o resultado é mais estratégico, mais organizado do que em 2020”, diz Sean Morales-Doyle, do Centro Brennan para Justiça

O grupo de vigilância Protect ­Democracy chama esses processos e outros semelhantes de “processos zumbis” e prevê que Trump e seus aliados tentarão reanimá-los após a eleição para contestar os resultados. Segundo Nikhel Sus, advogado do grupo Crew, os republicanos retomarão alguns dos processos abertos, mas não irão muito longe. “Vamos ver esses processos zumbis voltarem à vida de uma forma tática. E talvez esse fosse o objetivo desde o início. Você ainda precisa de provas para ganhar um processo judicial.”

Entrar com uma ação contra a elegibilidade do eleitor antes da eleição não lhe dá uma chance maior de sucesso depois, disse Morales-Doyle, do Centro Brennan. Ainda assim, o litígio permite um falso reconhecimento às denúncias de fraude. “Acho que depois da eleição vocês verão aqueles contrariados com o resultado apontarem para ‘nós temos dito nos últimos oito meses que eles tinham listas inchadas e pessoas mortas nas listas. Não cidadãos nas listas, e os tribunais nada fizeram a respeito’.”

Após os processos serem abertos, Trump poderia tentar impedir a certificação do resultado em nível local. ­Depois de um longo processo eleitoral pouco seguido, a certificação ocorre em nível municipal e estadual para oficializar os totais de votos após todas as cédulas terem sido contadas. Os conselhos locais, geralmente compostos de gente leal ao partido ou funcionários públicos pouco conhecidos, são responsáveis por realizar essa tarefa, e geralmente não têm poder para não certificar.

Desde 2020, entretanto, os republicanos aliados a Trump abraçaram a ideia de que as autoridades podem recusar-se a certificar o voto, o que especialistas em eleições dizem ser ilegal. Em todo o país, autoridades de conselhos eleitorais locais se recusaram a certificar eleições primárias e outras, com base em vagas preocupações sobre fraudes. Nenhuma dessas tentativas teve êxito, e todos os conselhos foram forçados a certificar os resultados no fim das contas.

A Geórgia, um dos sete estados decisivos na disputa presidencial, está no centro dessa pressão. Os comissários republicanos no condado de Fulton, onde se situa Atlanta, recusaram-se a certificar as eleições duas vezes neste ano. O grupo alinhado a Trump no Conselho Eleitoral Estadual também aprovou regras de última hora que poderiam ter aberto o caminho para as autoridades eleitorais locais não certificarem o voto em novembro. Um juiz bloqueou as regras e disse que a certificação no estado é obrigatória.

Para Nikhel Sus, é grande a possibilidade de autoridades locais em todo o país se recusarem a certificar os votos, forçando grupos a recorrerem aos tribunais para garantir o processo. “Embora seja ilegal e haja potenciais consequências legais severas para quem fizer esse tipo de coisa, causará certo nível de perturbação”, acredita. “Há uma chance de que, ao semear a desconfiança no nível do condado se o ex-presidente Trump perder a eleição, eles vão se preparar para contestar os resultados em 6 de janeiro de 2025, com base no fato de que houve fraude ou irregularidades não investigadas em estados específicos.”

Os Proud Boys, neonazistas, voltaram a se misturar ao eleitorado de Trump. A Heritage Foundation espalha fake news – Imagem: Brent Stirton/Getty Image/AFP e Rebecca Droke/AFP

Trump e os republicanos poderão tentar uma última contestação quando o Congresso emitir a certificação dos votos do colégio eleitoral em 6 de janeiro de 2025. Mas eles encontrariam obstáculos adicionais. Em dezembro de 2022, o Congresso aprovou um projeto de lei bipartidário, o Ato de Reforma da Apuração Eleitoral, que tornou mais difícil interferir na certificação do voto eleitoral. Entre outras coisas, dificultou a oposição dos integrantes do Congresso à vontade expressa pelos eleitores, esclareceu que a vice-presidente, Harris desta feita, não pode interferir na contagem de votos e deixou claro que apenas um governador de estado pode certificar uma chapa legítima.

“Fraude eleitoral”

Em 2020, Trump apontou a enorme mudança para a votação pelo correio e alterações emergenciais na votação, impulsionadas pela pandemia, para criar uma narrativa de fraude e alegar o roubo da eleição. Em 2024, mudou seu foco para outra coisa: votação de não cidadãos. Vários estudos mostraram que o voto de não cidadãos é incrivelmente raro. E é ilegal que não cidadãos votem em eleições federais.

Em 2023, Mitchell e outros republicanos lideraram, no entanto, uma forte campanha para semear a ideia de que o voto de não cidadãos poderia afetar as eleições norte-americanas. No início deste ano, os republicanos aprovaram um projeto de lei na Câmara dos Deputados que exigiria prova de cidadania para votar e proibiu o voto de não cidadãos, algo ilegal. Isso impulsionou a falsa tese de que os democratas permitem a não cidadãos cruzarem a fronteira para influenciar a disputa. “Nossas eleições são ruins”, disse Trump no debate de 10 de setembro com Harris. “E muitos desses imigrantes ilegais que chegam, eles estão tentando fazê-los votar. Eles nem sabem falar inglês. Eles nem sabem em que ­país estão, na prática. E estão tentando fazê-los votar. E é por isso que estão permitindo que eles entrem em nosso país.”

Outros republicanos importantes seguiram a mesma toada e amplificaram as falsas alegações. Autoridades eleitorais republicanas em alguns estados – Alabama, Texas, Virgínia e Tennessee – tentaram apoiar Trump com declarações de que havia milhares de não cidadãos nas listas. Muitos desses anúncios foram ­baseados em metodologia enganosa, e investigações posteriores mostraram que muitos dos indicados eram eleitores qualificados.

Elon Musk, o bilionário dono da X e um dos principais apoiadores de Trump, alavancou de forma significativa a mentira de que os democratas querem permitir o voto de não cidadãos, postando sobre isso ao menos 52 vezes e acumulando 700 milhões de visualizações, segundo análise do jornal Washington Post. A Heritage Foundation, grupo de pensadores de direita, divulgou vídeos enganosos que pretendiam mostrar não cidadãos a se registrar. Outros republicanos também contribuíram para espalhar os ­boatos. “Os democratas querem que os ilegais votem, agora que abriram a fronteira”, disse Steve Scalise, um dos principais deputados republicanos na Câmara dos EUA, em seu discurso na Convenção Nacional Republicana, em julho. Se Trump contestar a eleição, a mentira sobre o voto de não cidadãos provavelmente estará no centro de seus esforços.

Os republicanos espalham o boato de que os democratas pretendem permitir o voto de imigrantes ilegais e cidadãos não registrados

De acordo com David Becker, diretor-executivo do Centro para Inovação e Pesquisa Eleitoral, a ênfase no voto de não cidadãos foi um esforço claro para preparar o cenário para a acusação de roubo. “Esta será uma das principais, entre muitas, falsas alegações feitas se Trump perder”, disse em setembro. “Será falsa, mas ainda pode ser perigosa, pois pode incitar os apoiadores a acreditar que uma eleição totalmente segura foi roubada.”

 “Dano real”

Apesar de estar confiante de que qualquer esforço para anular os resultados da eleição não terá sucesso, Morales-Doyle ainda teme seus efeitos em longo prazo na política norte-americana. As democracias, reflete, dependem de os cidadãos acreditarem na legitimidade da escolha de seus representantes. Minar a crença nos resultados de uma eleição enfraquece essa peça fundamental de uma sociedade democrática.

À medida que a noite da eleição se aproxima, Morales-Doyle afirma-se preocupado com os potenciais efeitos duradouros do questionamento dos resultados. “A democracia só funciona se os eleitores acreditarem nela. E esse movimento é inteiramente construído em torno da desconfiança em nossas eleições e da disseminação dessa desconfiança. Acho isso realmente perigoso”, lamenta. “Estou bastante confiante de que as nossas instituições se manterão e mostraremos mais uma vez que temos uma democracia resiliente em 2024, mas vejo um dano real causado no longo prazo por esses ataques e essas tentativas de semear a desconfiança.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A trampa de Trump’

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