Elnara Negri

Livre-docente pela Faculdade de Medicina da USP e pneumologista do Núcleo Avançado de Tórax do Hospital Sírio-Libanês

Opinião

assine e leia

Políticas de saúde

A ciência avança rapidamente, mas o grande desafio é fazer com que as novidades beneficiem gente de todos os estratos sociais

Políticas de saúde
Políticas de saúde
Profissionais de saúde do Reino Unido transportam paciente em Londres (Foto: Tolga Akmen / AFP) Profissionais de saúde do Reino Unido transportam paciente em Londres (Foto: Tolga Akmen / AFP)
Apoie Siga-nos no

Quando criança, eu costumava assistir a desenhos animados que falavam sobre o futuro. Me lembro agora de um desses desenhos, cujo nome era O Laboratório Submarino, que começava com a seguinte frase: “Estamos no ano de 2020”.

Nele, o futuro era abordado como uma época em que a ciência reinaria absoluta na sociedade e seria acessível a todos. Com respeito e integração ao meio ambiente, os episódios mostravam a convivência harmoniosa entre idosos, jovens e crianças, que, juntos, aprendiam e faziam descobertas, mudando a realidade e a vida da coletividade para melhor.

Meu pai me acostumou a ler o jornal com ele desde cedo e, por isso, desde pequena me envolvia com as notícias de nosso país e do mundo. Via a fome e a seca no Nordeste, mostradas em histórias tristes, as guerras pelo mundo, a ameaça nuclear etc.

Pois bem. Estamos no ano de 2024 e, mesmo ainda ofuscada por tanta convulsão social, a ciência avança rapidamente e o grande desafio atual é fazer com que esses avanços cheguem e beneficiem a todos os estratos da sociedade mundial.

Dentre essas descobertas, a revolução no tratamento da obesidade tem-se destacado. A obesidade é um problema global grave e tem aumentado sobremaneira, principalmente na população de baixa renda. A falta de acesso a alimentação de qualidade, a ingestão de ultraprocessados e carboidratos e o sedentarismo, além de fatores ambientais, como a exposição à poluição do ar, têm piorado a situação.

Pela primeira vez na história do tratamento da obesidade, surgem drogas realmente revolucionárias, mas ainda inacessíveis financeiramente à grande maioria da população. Essas drogas, como a semaglutida e, mais recentemente, a tirzepartida mimetizam peptídeos e hormônios responsáveis pela saciedade, controlando o apetite e melhorando os níveis de glicose e gordura no sangue.

Elas representam um impacto gigante em doenças relacionadas à obesidade, como diabetes e hipertensão, e, por consequência, nas doenças cardiovasculares como o AVC e o infarto do miocárdio.

Os custos estimados pelo governo britânico para tratar essas complicações no sistema público de saúde deles, o NHS, beira os 11 bilhões de libras ao ano. Imagine esse custo no nosso SUS, com uma população cerca de quatro vezes maior.

Os estudos no Reino Unido mostram que a obesidade é causadora de quatro vezes mais faltas ao trabalho e que é um importante fator de desemprego. Além disso, uma vez desempregado, o obeso tem maior dificuldade em voltar ao trabalho e torna-se dependente de auxílio social, o que tem piorado os indicadores econômicos daquele país.

De maneira pioneira e com uma visão estratégica de futuro, o governo britânico lançou este mês um estudo em parceria com o laboratório Lilly para avaliar o impacto do uso da tirzepartida na empregabilidade dos britânicos que enfrentam a obesidade.

A tirzepartida tem mostrado efeitos análogos ao da cirurgia bariátrica, com perdas ponderais de 20% a 30%, revertendo e mantendo os pacientes fora dos níveis mórbidos de obesidade. O investimento no estudo será de 279 milhões de libras, em parceria público-privada com a Lilly Farmacêutica, ao longo de cinco anos.

A ideia é mostrar que esses medicamentos são de interesse social e podem reduzir os custos dos serviços públicos de saúde pelo mundo, melhorando não só a qualidade de vida das pessoas, mas também os índices econômicos e de empregabilidade. A hipótese é que seria muito mais barato impedir a instalação de diabetes e hipertensão do que fornecer esses novos medicamentos na rede pública. A quebra de patente dessas drogas seria o passo seguinte.

Mas, além de dar direito ao acesso a essas drogas pelo sistema público de saúde, o governo britânico vai investir em campanhas maciças de educação para a saúde que são tão ou mais importantes que os tratamentos e que devem começar na infância, nas escolas, com a promoção de hábitos saudáveis de vida.

O ministro da Saúde britânico, Wes Streeting, afirmou à BBC: “O investimento de hoje deve ser visto como um sinal em todo o mundo da determinação deste governo em tornar a Grã-Bretanha uma potência para as ciências da vida e tecnologia médica. Ao combinar o cuidado do NHS e a engenhosidade das principais mentes científicas do mundo, podemos transformar a saúde em uma riqueza de nossa nação”.

Está aí um exemplo a ser seguido. •

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Políticas de saúde’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s