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Em um segundo turno sem grandes surpresas, Tarcísio de Freitas rasga a fantasia de “bolsonarista moderado”

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Movimentos. Freitas foi o principal fiador de Nunes em São Paulo, enquanto Bolsonaro concentrou esforços para eleger Engler, derrotado em Belo Horizonte – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Douglas Magno/AFP
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Em outubro de 2021, o ­Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato do então ­deputado Fernando ­Francischini por propagar notícias falsas contra as urnas eletrônicas no dia da eleição, em 2018. A Corte entendeu que houve abuso do poder político e de autoridade, uma vez que ele exercia mandato parlamentar, bem como uso indevido dos meios de comunicação, práticas ilegais previstas no artigo 22 da Lei Complementar 64/1990. Muito mais grave que esse episódio foi a fake news semeada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, na manhã do domingo 27, com as urnas já abertas. Em entrevista coletiva ao lado de seu candidato, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), ele disse que o PCC, facção criminosa que controla os presídios paulistas, havia orientado voto no adversário Guilherme Boulos, do PSOL, numa clara tentativa de influenciar o voto do eleitor paulistano.

A jurisprudência do TSE no caso de Francischini abre um leque de possibilidades acerca do resultado da eleição para a prefeitura de São Paulo, na qual Nunes acabou reeleito com 59,35% dos votos válidos. Se o caso do deputado paranaense for usado como parâmetro e a legislação for cumprida, o mandato de Nunes pode ser cassado, novas eleições podem ser convocadas e Tarcísio de Feitas pode ficar inelegível por oito anos, assim como o próprio prefeito, o maior beneficiado pelas declarações do governador. “No caso de Francischini, o TSE entendeu que tinha gravidade objetiva e subjetiva suficiente para cassá-lo. Vão aplicar esse precedente no caso de São Paulo? Não sabemos. Mas, pela régua do ­Francischini, Ricardo Nunes deveria ser cassado e Tarcísio, ficar inelegível. Se isso não acontecer, os ministros do TSE vão ter que, de alguma forma, dizer que erraram no caso Francischini”, opina o advogado Luiz Fernando Pereira, especialista em direito eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

O mesmo artigo 22 da Lei Complementar que definiu a cassação de Francischini consta em duas ações judiciais protocoladas pela campanha de Boulos no próprio domingo 27, uma na Justiça Eleitoral de São Paulo e outra no próprio TSE, pedindo a inelegibilidade do prefeito e do governador por oito anos, além da cassação de Nunes e do seu vice, o coronel Melo Araújo. “Em alguma medida, o crime eleitoral cometido pelo governador de São Paulo é até mais grave do que o caso do deputado Francischini. Não resta dúvida da influência direta do governador assumindo um lado, durante o horário de votação, faltando ainda muito tempo para finalizar a votação. Isso teve uma grande repercussão na cidade, na imprensa, circulou nas redes sociais, explorando uma narrativa que vinculava Guilherme Boulos ao PCC”, destaca Francisco Octavio de Almeida Prado Filho, advogado de Boulos. “É difícil falar se influenciou ou não no resultado da votação, mas o que está em jogo é a gravidade do propósito de tentar influenciar.”

Sem provas e com as urnas abertas, o governador disse que o PCC orientou voto em Guilherme Boulos, do PSOL

Para o advogado Alexandre Rollo, professor de pós-graduação em Direito Eleitoral na Escola Judiciária Eleitoral Paulista, vinculada ao TRE, ainda que fosse verdadeira a declaração dada por Freitas, seria uma informação da inteligência da polícia, que ele teria ciência apenas por ser governador, a configurar abuso de poder político. “Tarcísio tinha acabado de votar e estava lá no colégio eleitoral devidamente vestido de apoiador do ­Ricardo Nunes, com o número 15 no peito, e acabou falando coisas que, em tese, ele tem acesso apenas pelo cargo que exerce. Governador não tem que dar esse tipo de ­declaração no dia da eleição, ele só falou o que falou porque interessava ao candidato dele e era contra o Guilherme Boulos. Se fosse o contrário não teria dito nada. Além disso, é nítido o uso indevido dos meios de comunicação social, porque a entrevista acabou sendo repercutida na imprensa, na internet, pelos apoiadores do Ricardo Nunes”, diz o especialista. Em entrevista coletiva logo após o encerramento da votação no domingo 27, a presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, afirmou que a Justiça Eleitoral dará uma resposta rápida à notícia-crime da campanha de Boulos contra Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes.

Alguns analistas têm dúvida se a acusação de Freitas influenciou diretamente no resultado das urnas, até pela margem de 20 pontos porcentuais de diferença, mas ressaltam o peso político que o governador teve na vitória de Nunes. O chefe do Executivo estadual é apontado como o grande vencedor na disputa em São Paulo, a afetar diretamente o capital político do seu mentor, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que permaneceu em cima do muro a maior parte da campanha, temeroso de que Pablo Marçal pudesse roubar a vaga de seu candidato no segundo turno. Só posou ao lado de Nunes após mais de dois meses, em um evento fechado numa churrascaria. Foi Freitas quem, de fato, se envolveu diretamente na disputa. O ex-presidente também teve um desempenho pífio em outras capitais e grandes centros urbanos, cenário que fez emergirem outros nomes no campo conservador. Em Goiás, Bolsonaro bateu de frente com o governador Ronaldo Caiado, do União Brasil, que elegeu Sandro Mabel prefeito de Goiânia, ante o bolsonarista Fred Rodrigues, do PL. Em Curitiba, o ex-presidente também saiu derrotado, depois de comprar briga com o governador Ratinho Júnior, do PSD. Apoiou a emedebista Cristina Graeml, derrotada por Eduardo Pimentel, candidato do governador.

Ricardo Stuckert/PR

Mas foi em Belo Horizonte que o ex-presidente amargou a maior derrota. Embora tenha saído na frente no primeiro turno, Bruno Engler, do PL e bolsonarista raiz, teve 46,27% dos votos contra 53,73% de Fuad Noman, do PSD. A prefeitura da capital mineira era uma das prioridades de Bolsonaro, que se empenhou pessoalmente para eleger o aliado. O ex-capitão também saiu derrotado em Belém, João Pessoa, Fortaleza, Manaus, Palmas, Rio de Janeiro e São Luís. Ganhou apenas em Cuiabá e Aracaju. “A marca desta eleição é o distanciamento de Bolsonaro como líder da direita e a projeção do Tarcísio de Feitas e do Ronaldo Caiado, nomes que já estão sendo citados para as eleições presidenciais de 2006. Bolsonaro está sendo jogado para escanteio. O que a gente vê é o crescimento da direita e da extrema-direita, o que, do ponto de vista da democracia, é terrível. Mas, por outro lado, fica clara uma divisão dentro da direita que enfraquece o próprio Bolsonaro. Ele não é mais o dono do pedaço, emergiram outros líderes”, observa a cientista política Vera Chaia, professora da PUC São Paulo.

O resultado do segundo turno confirmou a tendência anunciada no primeiro turno, dando larga vitória ao Centrão e à direita tradicional, que manteve o espólio político e eleitoral na grande maioria dos municípios. O PSD e o MDB fizeram o maior número de prefeituras. Outra marca das eleições municipais foi o grande número de prefeitos reeleitos. Mais de 80% dos que tentaram o segundo mandato saí­ram vitoriosos das urnas. No campo da esquerda, o PT saiu de 184 prefeitos, em 2020, para 252 neste ano, além de vencer em Fortaleza, um inegável avanço, uma vez que no pleito passado não havia conquistado nenhuma capital. Na mais acirrada disputa do segundo turno, o petista Evandro Leitão teve 50,38% dos votos na capital cearense e derrotou André Fernandes, do PL, que terminou com 49,62%. Uma vitória suada, no voto a voto, só confirmada com 99% das urnas apuradas.

A esquerda padece, mas o lulismo segue firme. Vários prefeitos eleitos por partidos de direita são próximos do governo federal, observa cientista política da Ufal

Apesar de o Centrão e a direita tradicional nadarem de braçada nas grandes cidades, a força do lulismo não deve ser impactada e o resultado não deve influenciar as eleições presidenciais de 2026. “É inegável o avanço de setores conservadores, inclusive no Nordeste. Isso altera a dinâmica local, mas não tem peso nas eleições presidenciais. Acho que o lulismo não perde força. Ao contrário, vários prefeitos eleitos, mesmo da direita, centro-direita, como do PSD e do MDB, têm alinhamento com Lula. Então, na verdade, Lula continua fortalecido”, avalia a cientista política Luciana Santana, professora da Universidade Federal de Alagoas e integrante do Observatório das Eleições. “O Nordeste continua onde sempre esteve, sendo uma região progressista. A eleição municipal não vai definir o que pode acontecer na disputa majoritária de 2026. Ela diz muito mais sobre a composição do Congresso Nacional, que deve ter mais cara de centro-direita, talvez até com menos extremismo do que estamos vendo na composição atual.” •

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vale-tudo eleitoral’

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