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O mercado reforça a campanha para o governo limar gastos sociais e desistir de uma tributação justa

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A economia brasileira vai bem e está cada vez melhor, mas a situação do governo é delicada e se complica dia após dia. Os dados positivos não revertem nem abrandam o ataque especulativo permanente desfechado pelo sistema financeiro, apoiado em temores de descontrole fiscal de justificativa duvidosa, segundo vários economistas. A equipe econômica faz o que pode sob o cerco implacável dos defensores da austeridade espetada, como de costume, no lombo dos desfavorecidos. Não bastasse o fato de 92% das despesas orçamentárias serem obrigatórias, metade dos gastos discricionários é constituída por emendas parlamentares. Além disso, os maiores privilégios tributários concedidos a empresários e empresas aumentaram, neste ano, para 424 bilhões de reais. No Congresso, a ampla maioria de oposição usou as famigeradas Emendas Pix, espécie de cheque especial sem vínculo com as políticas públicas entregue por parlamentares a correligionários, para reeleger prefeitos em 178 cidades apenas no primeiro turno. Apesar das evidências, o que se discute na “opinião pública” são propostas de corte nos programas sociais e na previdência da população mais pobre.

A realidade do Executivo é aquela de um poder ameaçado pela captura crônica do Orçamento pelos interesses privados e a cada dia os dilemas se multiplicam e as saídas se estreitam. Sem o alívio providencial proporcionado pela decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, de suspender a concessão de emendas e realizar uma auditoria do processo, o governo estaria acorrentado ao Centrão na sucessão da decisiva presidência da Câmara. A deliberação de Dino deu algum fôlego para o Palácio do Planalto negociar na estreita margem concedida pelo sistema financeiro e a mídia. “Não há respaldo nos dados macroeconômicos de inflação, contas públicas e outros que justifique uma mudança de humor tão aguda como a ocorrida no mercado, puxando para cima as taxas de juros”, ressalta Antonio Corrêa de Lacerda, professor de Economia Política da PUC–SP.

Tebet e Haddad vão apresentar a Lula um pacote de contenção de despesas – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ao contrário, prossegue o economista, houve clara melhora nos indicadores. A economia cresce acima das projeções do mercado, mas sem exagero, o desemprego está em queda e a renda, em elevação. Há ainda claros indicadores de crescimento futuro do investimento, com aumento da Formação Bruta de Capital Fixo. As reservas cambiais foram mantidas e ampliadas para 370 bilhões de dólares. Segundo Lacerda, é importante ressaltar, sob o ponto de vista fiscal mais amplo, o extraordinário custo de rolagem da dívida pública, mais de 800 bilhões de ­reais nos últimos 12 meses, o equivalente ao pagamento de juros por parte do governo. Nos últimos dois anos, a rolagem da dívida pública tem sido acima de 7% do PIB ao ano, enquanto a média dos países da OCDE é de 3%, apesar de dívidas proporcionalmente muito maiores.

Toda vez que a taxa de juros sobe, frisa o professor, o custo da rolagem amplia-se. Isso pressiona e aumenta a dívida pública. Além disso, um ajuste fiscal perene só é viável com crescimento da economia. “Seria ilusório e irreal tentar obter equilíbrio fiscal de curto prazo por meio de corte de gastos e investimentos. Especialmente em um país com tamanha desigualdade regional e de renda como o Brasil.”

Para a Faria Lima, estes da foto do alto são os culpados. Os sindicatos perderam força de pressão – Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil e Renato Luiz Ferreira

O cerne da atual “crise de confiança” está nas projeções para os próximos dois anos, e não nos dados macroeconômicos atuais, sublinhou em artigo no jornal O Estado de S. Paulo o economista Claudio Adilson Gonçalez, que foi consultor do Banco Mundial, subsecretário do Tesouro Nacional, chefe da Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda e atualmente preside a MCM Consultores. As taxas de juro no mercado futuro incorporaram a hipótese de o BC elevar a Selic para 13,75% ao ano, em um retorno ao patamar de junho de 2023 e assim devem manter-se por longo período. Em abril, a pesquisa Focus projetava 9% no fim do ano. “O mais intrigante é que os dados macroeconômicos disponíveis não conseguem explicar tamanha deterioração”, destaca Gonçalez no artigo, que gerou debate entre economistas nas redes sociais.

Fala-se em gastança, acrescenta, mas as despesas primárias totais, considerados os gastos extraordinários, devem fechar 2024 em 18,9% do PIB, abaixo do patamar de 19,5% observado em 2019, quando vigorava o teto de gastos. A relação entre a dívida bruta e o PIB alcançará, ao fim do ano, 78%, mas já era de 75,3% em 2018. “Não se pretende negar as perspectivas ruins para a evolução do endividamento público, mas falar que o País está em crise fiscal é um notório exagero”, ressalta no texto. A inflação está próxima do teto da meta e, como se diz no jargão dos economistas, as expectativas para os próximos anos estão desancoradas, tanto que o BC iniciou novo ciclo de aperto monetário, mas os prêmios no mercado futuro de juros alcançaram “patamares vertiginosos”, com a projeção de juro real de quase 10% ao ano, ou seja, mais que o dobro da estimada da taxa neutra, aquela que faria a inflação convergir para a meta e o PIB para seu nível potencial, pontua o economista.

A estratégia de Lula para enfrentar a situação de ataque especulativo permanente e captura do Orçamento não é clara. O presidente divide esforços entre justas críticas aos juros elevadíssimos e ao presidente do Banco Central e reuniões com banqueiros e sua associação, a Febraban, para discutir a redução das taxas. Diante da dificuldade para aumentar as receitas fiscais, deu sinais de aprovação ao pacote de cortes de gastos sociais anunciado pelos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Simone Tebet, do Planejamento. Sintomáticos de um afunilamento de alternativas, os cortes podem totalizar de 30 bilhões a 50 bilhões de reais e incluiriam mudanças no Benefício de Prestação Continuada, FGTS, seguro-desemprego e abono salarial.


O presidente e a equipe econômica mostram-se entre lacônicos e genéricos quanto ao tamanho e ao momento do arrocho e corre risco de errar quem interpreta ao pé da letra o que dizem sobre o assunto tanto Lula quanto Haddad. Nas circunstâncias dificílimas de governar sob cerco, pondera uma fonte de Brasília, impõe-se a ambos um jogo de cena, aquela manobra aberta, mas não necessariamente transparente, em que cada um dos participantes desloca os interlocutores da busca da verdade. A data de adoção do pacote de cortes é um mistério. A incerteza, entre bancos e corretoras, sobre o compromisso da nova gestão do BC com a meta de inflação caiu um pouco, mas a incerteza sobre o governo propor e aprovar medidas de contenção fiscal aumentou, diz José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, em informe da instituição. “Cabe a Lula decidir entre correr os grandes riscos políticos de contenção de despesas em 2025 ou em 2026. Insista-se, não se trata de cortes, mas de ritmo de crescimento”, acrescenta.

Desde o anúncio dos cortes, o governo está sob fogo cruzado. Parte da base governista e do próprio PT vê na proposta uma traição aos compromissos assumidos por Lula na eleição de 2022. Outra parcela vê o aperto como um atalho inevitável para conquistar o selo de bom pagador de dívidas outorgado pelas agências de classificação de risco, condição para atrair recursos externos em volumes imprescindíveis à ampliação dos investimentos e à reindustrialização em bases sustentáveis.

As críticas aos cortes são justas e bem fundamentadas, mas surgem desacompanhadas de propostas alternativas exequíveis e nem sempre levam na devida conta a dura realidade de desmobilização sindical e de ruptura estrutural entre os mandatos do presidente da República e do presidente do Banco Central, de efeito fatal na autonomia da política econômica. Esses dois aspectos foram abordados em intervenções esclarecedoras em seminário sobre economia política realizado na PUC de São Paulo.

Haddad: “O Brasil não pode se conformar em crescer abaixo da média mundial”

Participante há 18 anos do “Conselhão” criado pelo presidente Lula, o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, consultor das centrais sindicais, disse que o único tema em que não se conseguiu proposição convergente desde a criação desse órgão consultivo da Presidência da República foi a ampliação da participação da sociedade no Conselho Monetário Nacional, que define a taxa de juros a ser perseguida pelo BC. “Já tivemos, no passado, representação empresarial e dos trabalhadores no CMN. Houve, entretanto, um bloqueio e o debate foi interditado, tal a força dos interesses que capturaram o organismo que define as metas inflacionárias a serem seguidas pelo BC. Disseram que há ameaça de crescimento inflacionário e agora, de risco fiscal, e de como nós só temos um remédio que é ter a taxa líquida mais alta do mundo, que opera transferências de riqueza monumentais”, apontou.

Segundo Ganz Lúcio, “isso é muito difícil de explicar e transformar em objetivo de luta. As centrais olham para isso imaginando o que poderia ser feito, vão para a frente do BC, agitam, tentam criar alguma forma de polemizar, dizem que há outra alternativa, mas, objetivamente, há uma dificuldade enorme de se fazerem mobilizações em torno de um tema desses”.  O especialista torce para que a nova diretoria do BC “possa ajudar nesse debate sobre a participação da sociedade nas decisões de política monetária”. Para o professor de Direito Constitucional Pedro Serrano, colaborador desta revista, o presidente deve ter condições para adotar a política monetária para a qual foi eleito. A extinção, no governo anterior, da coincidência de mandatos retirou essas condições. “O povo, quando muda o governo, quer levar a mudança para todos os rincões da estrutura do Estado, em especial para aqueles com maior repercussão no exercício da soberania nacional, como é o caso da política monetária do BC.”

Neste contexto econômico e político complicado, o governo comemorou a elevação, pelo Fundo Monetário Internacional, da projeção de crescimento do Brasil, para 3%. “Não se trata de uma revisão qualquer de crescimento do País pelo FMI. É o maior ajuste que o Fundo Monetário Internacional fez, em termos de crescimento, para todos os países que ele acompanha”, sublinhou o economista André Roncaglia, diretor-executivo do Brasil no FMI, em entrevista a jornalistas em Washington, durante visita de ­Haddad aos Estados Unidos a convite da Casa Branca, para uma troca de impressões sobre o G-20 e as relações bilaterais. A revisão ocorreu, segundo Roncaglia, pelo fato de o Brasil incorporar os efeitos das várias políticas adotadas para impulsionar a economia. O fundo aumentou a previsão de crescimento em 0,9 ponto ­porcentual.  É o reflexo, ressaltou Roncaglia, tanto das políticas adotadas, do ponto de vista fiscal, quanto dos efeitos dos investimentos e dos gastos que o governo tem feito na recuperação do Rio Grande do Sul, e também da influência da reforma tributária sobre as expectativas da economia e a melhora do ambiente de negócios.

Haddad acrescentou que o FMI refez ainda a projeção do PIB potencial brasileiro recentemente. Na última atualização, passou para 2,5% no fim do ano. Essa revisão, no contexto de um crescimento sob inflação relativamente controlada, é sinal, segundo o ministro, de haver um bom potencial de crescimento sustentável, não algo que vai ocorrer neste ano e parar, mas com condições de continuar.

Em relação às ressalvas da mídia, de que o crescimento do PIB será menor no próximo ano devido à redução da sustentação fiscal, Haddad sublinhou o fato de que o estímulo deste ano foi muito menor do que o do ano passado e ainda assim a economia cresceu mais em 2024 do que em 2023. O ministro disse que a evolução depende de uma série de variáveis que até o fim do ano precisam ser ajustadas, mas não é verdade que o Brasil está crescendo com estímulo fiscal. “O déficit do ano passado, em função do pagamento do calote do governo anterior, é três vezes superior ao programado para este ano, segundo o mercado. E, apesar disso, a economia está crescendo mais do que em 2023.”

Sobre a questão fiscal, Haddad repisou o aspecto da corrosão muito forte da base fiscal de 2014 a 2022 e disse que o governo está empenhado em recompô-la, até porque as despesas herdadas para as quais não havia fontes de financiamento têm de ser pagas. Ao mesmo tempo serão restringidas as despesas, que devem cair como proporção do PIB, se a economia continuar a crescer acima de 2,5% ao ano, teto do arcabouço fiscal. Esse é o objetivo.

A respeito do pacote de gastos, Haddad disse ter reuniões agendadas com outros ministérios e o presidente para discutir o tema. “Está acontecendo uma convergência entre receitas e despesas, algo que não ocorria desde 2015. E sem maquiagens, como vender estatal na bacia das almas, dar calotes em precatórios”, disparou. “O Brasil não pode se conformar em crescer abaixo da média mundial, como aconteceu nos dez anos que antecederam a posse do presidente Lula em 2023”, disse ­Haddad em evento realizado em São Paulo.

A melhora da projeção do FMI está em sintonia com estimativas do Ministério da Fazenda, de que o PIB deste ano pode ultrapassar 3%. É pouco, alertam vários economistas, se o País pretende entrar no time dos desenvolvidos. Apenas nações que cresceram de 5% a 7% durante ao menos quatro a cinco anos seguidos, com participação expressiva do investimento público, desencadearam um processo de expansão capaz de mudar a economia de patamar. A taxa de investimento, quando se cresce nesse ritmo, oscila em torno de 25% e a do Brasil está deprimida faz dez anos, estacionou em 16,6% e é insuficiente para cobrir a própria depreciação.

Sem investimento produtivo, não há prosperidade. Mas o Congresso só pensa nas Emendas Pix – Imagem: Roberto Diziura Jr./AEN/GOVPR e Zeca Ribeiro/Agência Câmara

A especulação contra o governo, dissociada da situação efetiva da economia, ganhou mais combustível com recentes declarações do presidente do Banco Central até dezembro, Roberto Campos Neto. Na segunda-feira 21, o banqueiro declarou durante evento em São Paulo que o Brasil precisa de um choque fiscal, se quiser ter juros mais baixos de modo duradouro. A afirmação de Campos Neto, mais uma entre inúmeras proferidas fora do contexto das reuniões e da chamada liturgia do BC, ocorreu na mesma semana em que seu sucessor, Gabriel Galípolo, encontrava-se na China, em visita oficial.

Em seminário na USP, sobre os desafios e as perspectivas da economia, ­Haddad ressaltou que, se o Congresso tivesse aprovado as propostas do governo, não se estaria falando da questão fiscal. A exacerbação desse assunto chegou a tal ponto, ironizou o ministro, que, se houver superávit de 0,2% do PIB, o governo será tachado de neoliberal, mas, se ocorrer um déficit de 0,2%, vai ser rotulado de comunista.

Segundo Galípolo, existem “dores” associadas ao processo de ajuste fiscal que decorrem da diferença de velocidade com que operam os mercados financeiros em relação à velocidade possível da política. “Sei do compromisso do ministro Haddad em entregar uma política fiscal sustentável e socialmente justa”, sublinhou o futuro presidente do BC, em seminário organizado pelo Itaú no início de outubro. •

Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nem migalhas’

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