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Anísio Teixeira aprovaria o Ideb?

Criado em 2007 pelo instituto que leva o nome do educador, o indicador tornou-se um mero ranking de escolas

Anísio Teixeira aprovaria o Ideb?
Anísio Teixeira aprovaria o Ideb?
Métrica. Hoje, o sucesso é medido pelo número de escolas que “batem a meta”, e não pelo desenvolvimento real dos alunos – Imagem: Gabriel Jabur/Agência Brasília
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No Dia do Professor, o presidente Lula sancionou a lei que reconhece o educador Anísio Teixeira como o patrono da escola pública brasileira. Este é um momento emblemático para a educação, pois Teixeira sempre defendeu uma escola que fosse mais que um lugar de mera apresentação de conteúdos. Ele acreditava em um espaço democrático, capaz de formar cidadãos críticos e preparados para a vida em sociedade, não apenas para passar em exames ou se adequar a métricas.

Ironicamente, o principal indicador de qualidade da educação básica no Brasil, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), foi desenvolvido pela autarquia que leva o nome do educador. Criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep, seu objetivo inicial era medir o fluxo escolar e a aprendizagem de forma regionalizada, promovendo a melhora contínua da qualidade de ensino. Com o passar dos anos, o que deveria ser uma ferramenta para aprimorar a educação tornou-se um ranking de escolas e, por vezes, de municípios, usado como uma espécie de selo de boa gestão.

Esse uso distorcido do Ideb tem consequências, no mínimo, controversas. Na busca por melhorar suas posições nesses rankings, muitas escolas passaram a adotar práticas que priorizam o desempenho nas provas em detrimento de uma formação integral do aluno. O foco excessivo em resultados padronizados gera um ciclo de ensino voltado para a memorização e preparação para testes, em vez de promover a reflexão crítica e o desenvolvimento de habilidades mais amplas, que eram centrais no pensamento de Teixeira.

O índice desconsidera as desigualdades socioeconômicas e regionais que impactam a qualidade de ensino no Brasil

Como consequência, a educação passa a ser vista como uma corrida de obstáculos para obter melhores notas, na qual os alunos mais aptos a escolher alternativas e acertar o gabarito são valorizados em detrimento dos que não têm essa habilidade. Muitos estudantes chegam a ser desestimulados a fazer a prova, para não afetar a média geral da escola. Será que o atual Ideb seria um indicador aprovado pelo novo patrono da ­escola pública do Brasil?

Um dos maiores problemas da visão meritocrática adotada pelo Ideb é que, ao sintetizar dados de aprovação e desempenho em avaliações, o índice não considera as desigualdades socioeconômicas e regionais que impactam diretamente as escolas. Fatores como a infraestrutura escolar, a formação e regularidade dos docentes e, principalmente, as condições de vida dos alunos são ignorados quando se colocam todas as escolas em um único parâmetro comparativo. Assim, alunos e escolas que enfrentam contextos sociais mais desafiadores acabam sendo classificados negativamente, reforçando estigmas e desigualdades.

Embora o Ideb tenha sido criado com boas intenções, sua evolução para um mecanismo que gera comparações rígidas entre escolas e municípios acaba prejudicando o próprio propósito de melhora educacional que Teixeira defendia. Ele acreditava que a educação deveria ser compreendida como uma necessidade social, ou seja, deveria pautar-se pela necessidade das pessoas para se aperfeiçoar num processo de integração social e desenvolvimento às suas próprias ideias e conhecimentos.

A educação deveria basear-se na vida-experiência e aprendizagem. Teixeira relacionava o projeto educacional à consolidação da democracia brasileira. Defendia a priorização ao acesso e acompanhamento das séries iniciais, oferecendo o direito à educação ao longo de todo o desenvolvimento da criança até a fase adulta. No entanto, o uso indiscriminado de indicadores como o Ideb transforma a educação em um processo industrializado, em que o sucesso é medido pelo número de escolas que “batem a meta”, e não pelo desenvolvimento real dos estudantes.

Quando a escola deixa de ser um espaço de cuidado e proteção, ela torna-se um local de simples treinamento. O projeto educacional de Anísio Teixeira preconizava o fortalecimento dos vínculos comunitários na escola para a formação integral dos sujeitos, a base da educação integral. Território, comunidade e formação integral eram estruturantes no pensamento educacional e político de Teixeira.

Patrono. Ele jamais aceitaria um modelo que se limita a preparar alunos para provas – Imagem: Arquivo Nacional

Receber o título de patrono da escola pública é uma honra merecida. Mas será que Anísio Teixeira não iria gostar, também, que o instituto que leva seu nome freasse o uso indiscriminado de indicadores que estimulam a competição entre as escolas e, consequentemente, a industrialização da educação? É preciso repensar o modelo para medir o real desenvolvimento dos estudantes brasileiros, a fim de que seus sonhos não sejam reduzidos a uma pontuação numérica.

De fato, mensurar a qualidade da educação é uma questão complexa. A redução das taxas de reprovação, por exemplo, nem sempre reflete a melhora no aprendizado dos alunos, pois pode esconder um ajuste estratégico do município para evitar quedas no Ideb.

Teixeira ainda aguarda a segunda parte do seu reconhecimento nacional. A verdadeira homenagem deve ser a revisão do uso dessas ferramentas de avaliação e a construção de políticas públicas que respeitem as diferenças regionais e sociais, promovam a equidade e devolvam à escola pública o seu papel central na formação de cidadãos críticos e conscientes. Uma escola que se limita a preparar alunos para passar em provas, e não para enfrentar os desafios da vida, está muito distante do futuro que qualquer patrono da educação poderia vislumbrar. •


*Micaela Gluz é pedagoga e coordenadora de Educação do Instituto Cultiva. Rudá Ricci é cientista político e presidente do Instituto Cultiva.

Publicado na edição n° 1334 de CartaCapital, em 30 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Anísio Teixeira aprovaria o Ideb?’

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