Cultura
A carta deixada por Antonio Cicero antes da morte assistida na Suíça
Diagnosticado com Alzheimer, o escritor enviou a correspondência a pessoas a quem tratou como “os amigos mais íntimos”


Em um texto comovente, o escritor e filósofo Antonio Cicero se despediu de amigos próximos antes de passar por um procedimento de eutanásia na Suíça nesta quarta-feira 23. “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, escreveu.
Diagnosticado com Alzheimer, Cicero enviou a correspondência a pessoas a quem tratou como “os amigos mais íntimos”, e disse que não reconhecia outras pessoas. No texto, lamentou que não conseguia escrever “bons poemas nem bons ensaios de filosofia”, e que não conseguia se concentrar para ler, “a coisa que eu mais gostava no mundo”.
“Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação”, disse na carta, que pode ser lida na íntegra no fim deste texto. “Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo”.
Há 16 anos, em uma coluna na Folha de S.Paulo, o escritor abordou o tema de forma incisiva. “Os defensores da eutanásia são, por vezes, acusados de integrar uma ‘cultura da morte’. Trata-se de uma confusão lamentável e deliberada”, escreveu.
“A morte é, na prática, o processo de morrer. Esse processo pode ser rápido ou demorado. O direito à eutanásia é o direito de quem está morrendo de abreviar esse processo, caso ele se torne excessivamente penoso. Abreviar a morte é torná-la mais breve, menos dolorosa. Seria mais justo, portanto, dizer que aqueles que impõem a todos a morte mais prolongada e pesada é que pertencem à verdadeira ‘cultura da morte’”, concluiu.
Confira a íntegra da carta escrita por Antonio Cicero:
“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”
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