Campanha Fora Essencis

Grupo de luta contra o lixão da empresa Essencis, localizado no bairro CIC, em Curitiba (PR).

Opinião

Os relatos da população que o governo do Paraná quer ‘soterrar’ com um lixão

Moradores, partidos e sociedade civil tentam barrar a redução da distância mínima entre aterros sanitários e áreas habitadas, a mais nova empreitada ultraliberal do governo do Paraná

Os relatos da população que o governo do Paraná quer ‘soterrar’ com um lixão
Os relatos da população que o governo do Paraná quer ‘soterrar’ com um lixão
A Ocupação Tiradentes 2, na imagem acima, são as casas entre as árvores que separam o aterro da Tiradentes 1. Foto: Rodrigo Fonseca/CMC
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Organizações, associações de moradores, partidos e membros da sociedade civil, organizados na campanha Fora Essencis, manifestam repúdio e contrariedade à proposta de redução da distância mínima entre aterros sanitários e áreas habitadas, de 1,5 km para 500 metros. O governo estadual do Ratinho Jr. (PSD) tem aplicado uma política ultraliberal que nos leva a essa mudança, trazendo impactos significativos nas esferas ambiental, de saúde pública, social e urbanística, afetando diretamente as populações que vivem nas proximidades desses locais.

A proposição foi feita pela ABREMA – Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente, que tem vínculos com a empresa Solví Essencis Soluções Ambientais S.A. A companhia opera em Curitiba há anos e, desde 2010, tem conseguido constantes prorrogações de licenças e contratos para realizar os serviços de tratamento e disposição do lixo da capital e da região metropolitana. O aval para isso tem sido dado pelo poder público através de credenciamento licitatório simplificado, sem tomar medidas efetivas para a destinação adequada do lixo, redução de impactos e até mesmo ignorando o descumprimento dos princípios presentes na Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010).

Em outubro de 2023, o Ministério Público do Paraná e a Universidade Federal do Paraná (UFPR) emitiram recomendações administrativas com base em informações técnico-científicas contra a proposta de redução da distância mínima entre aterros e residências. Mesmo com o alerta sobre os riscos da alteração do artigo 15 da Resolução CEMA 94/2014, o governo estadual segue marchando rumo ao retrocesso.

O debate, do ponto de vista social, deveria ser travado por aqueles que serão diretamente afetados pela medida. Na prática, porém, há pouco espaço para que crianças, adultos e idosos opinem sobre seu próprio futuro.

O Instituto Água e Terra (IAT), usado como arma política de Ratinho, deu parecer favorável à proposta, sem respaldo científico ou qualquer consulta à população, direta ou indiretamente afetada por essa possível mudança. O órgão de Estado, que deveria agir pelos populares, teve a sua estrutura e aparato usados para atender interesses de algumas empresas que gerenciam aterros sanitários no Paraná e que pretendem, sob argumentos falaciosos e incompatíveis com a realidade, ampliar seus tentáculos econômicos.

Esse repúdio popular, portanto, busca preencher essa lacuna deixada pelo modus operandi de um governo autoritário, que tenta tratorar uma discussão que sequer deveria ter sido iniciada. Os relatos aqui reunidos formam uma pequena síntese da visão daqueles que o governo ultraliberal pretende soterrar para atender o apetite dos seus aliados endinheirados.

Irmã Anete, do Centro de Assistência Social Divina Misericórdia, entidade localizada às margens de um aterro na Cidade Industrial de Curitiba:

“O lixão tem valido mais do que a vida das pessoas. Nestes últimos dias, tenho acompanhado a discussão da insana tentativa de aprovar uma mudança nas regras de distanciamento entre os aterros e núcleos populacionais. Um Conselho inteiro se rendendo a uma associação ligada fortemente a duas empresas que só pensam nos seus lucros: Solvi Essencis e Estre. É no mínimo estranho.

Esse pessoal certamente não têm casa, apartamento ou mansão perto de um lixão. Talvez eles queiram experimentar. Quem sabe, poderemos transformar praças em aterros, já que esta distância é, como eles dizem, tão ‘insignificante’ e, segundo eles, ‘não gera impactos sérios’. Moro na região do Sabará, na CIC, desde antes que se instalasse o lixão por aqui, e vi um buraco se transformando em montanhas de lixo; vejo há anos urubus no nosso céu e sinto o cheiro forte que de lá vem. Isto sem contar com os reflexos na saúde, especialmente no sistema respiratório das pessoas.

Este lixão da Essencis da CIC já deveria ter sido desativado. Todos sabem dos prejuízos ao meio ambiente, especialmente na qualidade da água, e na qualidade de vida de quem mora nas proximidades. Os conselheiros do CEMA deveriam vir visitar este lixão para ver como é verdadeiro o nosso relato. Se o lixão do Caximba foi fechado e transformado num jardim com placas fotovoltaicas, o nosso também pode ser.”

O IAT, ao entrar no jogo do governo, tem também ignorado o déficit de pelo menos 500 servidores no órgão, indispensáveis para a fiscalização de atividades potencialmente poluidoras. O órgão também não atende mais aos pedidos de divulgação das análises ambientais nas áreas dos aterros que supostamente se beneficiariam com a redução.

Contrariando o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e as Normas Técnicas Brasileiras (NBR), o IAT emitiu seu parecer sem promover audiências públicas. A medida tenta driblar o baixo respaldo científico e o quase inexistente apoio popular à redução.

A falta de humanidade do poder público amplia os já sérios problemas sociais e de saúde das pessoas que vivem em regiões que serão impactadas pela diminuição da distância.

Com a palavra, Diego Torres, presidente da Associação de Moradores das Moradias Sabará:

“Sobre a questão de morar próximo a um aterro sanitário, lixão como chamamos por aqui, é algo que ninguém gosta. Morar ao lado de um local como esse é ter que conviver com algo rejeitado pela sociedade. A gente não escolheu e ninguém gostaria, sobretudo porque isso gera impacto na saúde de todas as pessoas do bairro, crianças, idosos, jovens e adultos. Sentimos o cheiro que é muito desagradável, um cheiro muito estranho que não sabemos exatamente o que é. Esse cheiro, supomos, é causado por produtos químicos que jogam por ali. Há urubus que voam no bairro e podemos ver de longe. Aqui no bairro, muita gente tem problema respiratório por causa do gás metano, das químicas geradas a partir desse processo de decomposição do lixo e do chorume. Também é um absurdo constatar que o lixão está ao lado da estação de tratamento de água da Sanepar, ao lado de uma casa de custódia e ao lado de escolas e moradias.

Para a gente é muito triste e, no fundo, não temos uma prefeitura e nem um governo do estado que dialogue com sua comunidade. Da forma como eles trazem o lixo para a comunidade a gente também se sente um lixo. Nossos governantes e o IAT estão propondo algo inacreditável.

Nós já sabíamos que éramos esquecidos e marginalizados, o lixão está instalado aqui por ser o final da cidade. Não temos muita voz e por isso a prefeitura continua apoiando e passando pano para essa empresa. Mas é inacreditável ver como a prefeitura não liga para o seu povo e sua população: estão pensando muito mais nos aterros e lixões do que nas pessoas que vivem nessa cidade.”

Aterro Essencis. Foto: Rodrigo Fonseca/CMC

A proposta representa, além de um retrocesso social e ambiental, um ataque direto à Constituição, que diz, sem meias palavras, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, “impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Além de ir contra o que expressa a Lei Maior, o governo do Ratinho Jr. também rasga o compromisso firmado em 2021 pelo próprio governo em relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de números 3, 6 e 11. O não cumprimento desses termos é, indiscutivelmente, uma traição.

A história de Geovanna Domingues, moradora da ocupação Tiradentes II e Dona Cida, é apenas uma na pilha dos muitos casos registrados no entorno do aterro:

“Morei na antiga ocupação Tiradentes 2, comunidade que foi despejada no dia 9 de julho de 2024 pela empresa Solve Essencis. Hoje moro no Dona Cida. Gostaria de deixar aqui a minha indignação sobre esse distanciamento de aterro sanitários de áreas populacionais. As pessoas não têm noção de como é ser vizinho de um aterro: o cheiro é muito forte e a cada 15 dias piora com o uso de um produto químico. Nesses dias, a gente quase não consegue dormir por conta do cheiro de gás que sobe com o produto, que irrita os olhos e garganta. A minha neném, quando tinha 8 meses e eu estava morando na comunidade bem ao lado do aterro, teve um problema bem grave de uma bactéria no estômago. Naquela época, percorri muitos hospitais com a minha família, e ninguém sabia o que a Maria Fernanda tinha. Foram quase dois meses direto vomitando. A gente achou até que ela tinha sido envenenada. Depois de uns exames, os médicos descobriram que ela tinha essa bactéria e o pediatra disse que essa é uma bactéria que pode ser encontrada no solo e no ar da região.”

O descumprimento das leis vigentes está não só afetando o presente, como no relato de Geovanna, mas também destruindo o futuro das crianças que vivem nesta região. A situação das escolas nesses bairros que possuem aterros sanitários deve ficar ainda mais delicada, segundo relatos dos professores Julia Silveira e Renan de Oliveira, que lecionam em escolas públicas na CIC:

“Como professores que atuam em escolas da região, vemos no dia a dia com as crianças e adolescentes como o avanço do lixão afeta a vida escolar. Cotidianamente, sabemos que o abandono das famílias que vivem em torno do lixo impede que os alunos cheguem à escola em dias de chuva, porque não há transporte escolar disponibilizado. O lixão também acarreta vários afastamentos por problemas de saúde das crianças da escola, que faltam às aulas por contrair doenças como dengue. Por si só, essas faltas afetam o aprendizado dos alunos, que acabam perdendo muitos dias de aula e, por isso, deixam de aprender tudo o que deveriam.

Além disso, o medo do despejo e do avanço do lixão tira o foco dos estudantes. Como prestar atenção na aula sem saber se sua casa ainda vai estar lá quando você voltar? Como se concentrar sabendo que seus familiares estão doentes por causa do lixo?

O despejo da Tirandentes II, para dar lugar ao lixão, aconteceu de forma violenta, em um dia de frio e de chuva. Alguns alunos nossos foram afetados. Além de perder casa e móveis, crianças do ensino fundamental estavam em desespero sem saber como iriam voltar para a escola, depois de terem perdido todo seu material escolar nesse processo.”

Ocupação Tiradentes II, despejada sob violência após pedido de reintegração de posse da Essencis.
Foto: Rodrigo Fonseca/CMC

Defendemos, por fim, que essa luta travada hoje no Paraná não deve mais ser tratada como um caso isolado: junto com as fumaças – provocadas pelo agronegócio – e a especulação imobiliária, essa diminuição de 1,5 km para 500 metros de distância constitui um ataque direto à qualidade de vida da classe trabalhadora nacional.

O impacto ambiental, no momento em que se luta internacionalmente por medidas de preservação do meio ambiente e por financiamento de práticas que mitiguem os efeitos da mudança climática, transforma a discussão, inicialmente local, em um problema de interesse nacional. Como pode o Brasil ecoar cobranças por práticas sustentáveis e fazer vistas grossas para a contaminação da água e da terra e para a poluição do ar? Um potencial risco de despejo para os moradores da região, no auge de uma crise habitacional no Brasil, torna tudo ainda mais urgente e grave.

João Pedro, militante da Revolução Socialista do PSOL e integrante do ‘Fora Essencis’:

“O governo Ratinho Junior tenta avançar mais uma vez, mercantilizando o nosso direito básico a se desenvolver num ambiente adequado. Apresentamos esta manifestação popular como denúncia quanto à atuação do poder público em aceitar e participar de retrocessos como esse. Que também garante a operação de um aterro que já esgotou sua capacidade de funcionamento às custas da vida e da saúde das pessoas que vivem na região. Diante da falta de segurança das normas e nas suas aplicabilidades, além da ausência de justificativas sociais e ambientais adequadas, manifestamos nossa oposição a essa proposta.”

A luta contra essa medida entra, em outubro e novembro, num momento decisivo: organiza-se para a virada do mês uma votação no Conselho Estadual do Meio Ambiente (CEMA) que deve definir os rumos das discussões. Os conselheiros, sem ouvir a população, devem, enfim, registrar os votos.

A campanha Fora Essencis tem, portanto, o seu maior desafio para barrar esse retrocesso. Há duas formas para você contribuir com essa luta: participar das ações de mobilização digital, pela página @fora.essencis, e integrar as manifestações que o grupo organiza para o dia da votação.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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