Diálogos da Fé

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Quando a imprensa segue a sustentar a falácia de um ‘porta-voz’ dos evangélicos

Silas Malafaia fala sozinho nas notícias, mas não tem a fala reconhecida e valorizada por uma boa parcela dos evangélicos

Quando a imprensa segue a sustentar a falácia de um ‘porta-voz’ dos evangélicos
Quando a imprensa segue a sustentar a falácia de um ‘porta-voz’ dos evangélicos
Fábio Wajngarten, Silas Malafaia e o deputado federal Zucco em coletiva na sede do PL em Brasília — Foto: Reprodução
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Há três anos, em 13 de outubro de 2021, este espaço de CartaCapital publicava um texto de minha autoria intitulado “A imprensa precisa mudar o discurso: ninguém fala pelos evangélicos”. O artigo foi escrito a propósito das controvérsias em torno da indicação de André Mendonça, ex-ministro da Advocacia Geral da União e da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, para uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Era o cumprimento da promessa feita pelo governante, quando tomou posse em 2019, de indicar um ministro “terrivelmente evangélico”.

A atmosfera motivou o pastor-presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia, a divulgar um vídeo no qual acusava políticos que conspiraram contra Bolsonaro e os evangélicos na busca de um nome alternativo a Mendonça. No tom raivoso que lhe é peculiar, Silas Malafaia afirmava no vídeo: “ninguém vai enganar a comunidade evangélica… E não serão vocês que dirão se A ou B é terrivelmente evangélico”. E o pastor presbiteriano virou ministro do STF.

Silas Malafaia protagonizou outros episódios públicos depois deste e se destacou, mais recentemente, como organizador de manifestações de rua da extrema direita contra o STF e em defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, prestes a ser indiciado como incentivador de ataques à democracia, entre outras ilegalidades.

A defasagem de jornalistas na cobertura de religião é significativa. Não há formação nas escolas de jornalismo sobre o tema

Agora, nos dias que se seguiram ao primeiro turno das eleições municipais, a TV Folha concedeu mais de 40 minutos a Silas Malafaia, em uma destacada entrevista com uma de suas mais respeitadas jornalistas, para um balanço das eleições. Por conta da pronúncia de críticas duras à postura de Jair Bolsonaro e aliados políticos no pleito da cidade de São Paulo, o vídeo da entrevista viralizou nas mídias sociais. Isto por conta de ter sido classificado como a “exposição de um racha na direita”, e ser aclamado, especialmente, por pessoas da esquerda.

No mesmo dia, o pastor assembleiano foi entrevistado por uma bancada da GloboNews, que lhe pediu um balanço das eleições e o credenciou como “consciência crítica da direita”. Uma bancada também entrevistou Malafaia na UOL TV e houve novas aparições na Globo News, além de espaço garantido em outras matérias sobre as reações pró e contra o discurso dele.

Parece incrível que eu ainda possa repetir as mesmas palavras que redigi em 2021 e produzir apenas alguns ajustes contextuais. Não é de hoje que o pastor Malafaia encarna o papel de porta-voz dos evangélicos. É uma estratégia política dele que lhe gera dividendos entre uma parcela deste grupo religioso e também de outros que têm afinidade com o seu discurso.

A questão que permanentemente se coloca não é a performance política de Malafaia, o alinhamento dele a Jair Bolsonaro e ao que ele representa ou a ressonância de seu discurso. O que precisa ser intensa e amplamente criticada é a cobertura da imprensa que permanece credenciando o pastor como porta-voz dos evangélicos, o que é ilegítimo e enganoso. Uma falácia!

Em todos os balanços sobre as eleições e sobre o papel da direita solicitados a Malafaia, como líder religioso, publicados pela imprensa, o pastor fala sozinho. Não há matéria jornalística que tenha outras vozes evangélicas para contrapor o que ele diz e reproduzir a pluralidade do segmento. Muito menos abordagens que revelem o que outras personagens e lideranças desse grupo pensam sobre as eleições e as disputas das diferentes tendências políticas.

Temos neste fenômeno de comunicação o que transparece ser não só busca de público, pelo valor-notícia do sensacionalismo que a figura do pastor provoca. É possível identificar um misto de ignorância de jornalistas sobre o campo evangélico, moldado pela expressão imaginária da religião dominante, com afinidade ideológica com as empresas de mídia. Explico, reproduzindo elementos sobre os quais eu já havia escrito em 2021.

A defasagem de jornalistas na cobertura de religião é significativa. Não há formação nas escolas de jornalismo sobre o tema, muitos profissionais não se interessam em pesquisar e aprender e acabam cometendo equívocos frequentes. A resistência ao aprendizado pode advir, boa parte das vezes, do próprio imaginário. Jornalistas são pessoas que têm visões de mundo, formação cultural, histórias de vida, nas quais está ou não a religião. Sua forma de cobrir um tema referente a religião terá a interferência deste imaginário sobre grupos religiosos podendo ser embasado em uma visão positiva, negativa, profunda, rasa, apoiadora, resistente.

Muita gente é formada no imaginário da expressão religiosa dominante do Brasil, a Católica. A colonização religiosa é forte nestas terras e muita gente imagina qualquer outra religião a partir do que conhece do Catolicismo no qual foi formado direta ou indiretamente. Afinal, o Brasil parou dias atrás para celebrar uma santa, católica, mesmo quem tem outra religião ou não tem uma, com feriado nacional. Portanto, muitos jornalistas imaginam evangélicos a partir da formação católica direta ou indireta que recebem. Não conseguem conceber uma religião que não tenha um Papa, um líder que hierarquicamente a conduz, um ou mais porta-vozes habilitados. Não por acaso credenciam um para os evangélicos, o pastor Malafaia, que se auto-habilita e se impõe como tal, o que é bem recebido pela imprensa.

Por fim, há o elemento da afinidade ideológica. Se Malafaia, Bolsonaro, Michele, Damares, representam uma parcela conservadora da sociedade brasileira, é possível reconhecer uma afinidade entre estes líderes e quem produz e emite conteúdo nas mídias, pelo destaque que lhes concede. Isto se manifesta, em especial, no chamado “jornalismo declaratório” – matérias elaboradas a partir de falas desses personagens, sem apuração do conteúdo a que se referem ou mesmo contrapontos.

Isto pode explicar a indiferença do noticiário às controvérsias em torno de Silas Malafaia entre os próprios evangélicos. Malafaia fala sozinho nas notícias, mas não tem a fala reconhecida e valorizada por uma boa parcela dos evangélicos.

Se o conservadorismo evangélico tem suas marcas na política com reações aos avanços na justiça de gênero e nos direitos das comunidades tradicionais, o conservadorismo midiático se revela na forma como o noticiário demoniza as esquerdas e os movimentos sociais e reage à concessão de direitos às classes desprivilegiadas, atuando pela manutenção do status quo. Identificam-se, portanto, afinidades eletivas entre o jornalismo veiculado pelas grandes mídias e as lideranças evangélicas em destaque na política. O palco midiático a Silas Malafaia e o silenciamento das reações negativas entre evangélicos a esta figura podem ser compreendidos por este viés.

Evangélicos não são unívocos: são fragmentados e plurais. Evangélicos não têm representantes, diferentemente dos católicos que têm uma igreja centralizada. Dado o contexto de força política deste grupo hoje, muitos líderes buscam falar em nome do segmento. Os beneficiados politicamente com tais falas reverberam isto. Fica-se, então, com o discurso hegemônico, neste caso o conservador.

Duas urgências emergem destes elementos apontados aqui: 1) os evangélicos que têm uma visão crítica do uso político da fé cristã estão cada vez mais desafiados a erguerem sua voz; 2) os produtores de notícias precisam superar a falácia da apresentação dos evangélicos como um grupo homogêneo e rechaçar tendências unificantes de um segmento formado por uma expressiva variedade de grupos, tornando nítidas e notórias as diferentes posturas e projetos deste segmento no espaço público.

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