Cultura
Sob o segundo sol
Oito anos após superar o alcoolismo e a dependência química, Nando Reis lança, simultaneamente, quatro discos nos quais apresenta 26 canções inéditas


Quase no fim do show da turnê de lançamento do ambicioso álbum quádruplo Uma Estrela Misteriosa Revelará o Segredo, em São Paulo, no sábado 12, Nando Reis dirigiu-se ao público para falar de um problema grave que o acompanhou por boa parte de sua carreira.
“Esta canção que vamos cantar agora eu escrevi como presente de Natal para minha família em 2016, quando eu imaginava – e, de fato, estava certo – ter vencido uma luta que travei contra meu alcoolismo e minha dependência química de muito, muito sofrimento.”
O cantor e compositor contou ter escrito a música para presentear a mulher e os filhos durante a ceia, momento em que se reúnem para trocar presentes e, eventualmente, cantarolar.
“É muito emocionante para mim cantar aqui com eles presentes, porque eles sabem mais do que ninguém da dificuldade”, disse, antes de interpretar, com a voz em alguns momentos embargada, Daqui por Diante: Longe vai, ficou pra trás, passamos/ Foi-se o caos, estou em paz/ Acho que estamos/ Nessa casa onde tudo começou/ Nessa sala tudo se falou/ Rimos e choramos/ Nos desencontramos.
“Por que faço música? Para expressar meu pensamento e para expurgar meus sentimentos”, diz, aos 61 anos
Nando tem agido assim em todas as cidades pelas quais tem passado na excursão de lançamento desse projeto que é também o primeiro que fez estando completamente sóbrio. Na faixa Des-mente, a questão da dependência é tratada frontalmente: Não quero cheirar/ Não quero fumar/ Não quero beber/ Não quero usar/ Não quero voltar/ Não quero morrer.
“Acho que especialmente estas canções com um grau extremo da individualidade trazem, no fundo, um tema de total universalidade”, diz Nando Reis, às vezes prolixo, mas também profundo, em entrevista a CartaCapital. O músico crê que, ao abordar o assunto abertamente, chama atenção para o problema.
“Há inúmeras coisas negadas e ignoradas”, afirma. Quando fala isso, ele se refere também às pessoas com deficiência. O músico tem dois irmãos com sequelas de meningite e, na turnê, tem trabalhado a acessibilidade para além do que as casas de espetáculo disponibilizam como padrão.
No show de São Paulo, por exemplo, foi reservada uma área de um dos lados de frente do palco exclusivamente para pessoas com deficiência, com intérprete de Libras. Sua produção fez uma parceria com o programa Incluir pela Arte para que as 24 cidades da turnê tenham atendimento especial para as pessoas com deficiência.
O músico diz que tratar temas relacionados à inclusão é também uma forma de posicionamento político. “Durante a pandemia e o governo Bolsonaro, me vi fazendo contrapontos”, afirma, para em seguida ponderar que, apesar disso, não gosta de ser belicoso.
Nova trilha. O álbum quádruplo, apresentado em turnê pelo País, é o primeiro que o cantor e compositor criou estando sóbrio – Imagem: Acervo pessoal/Nando Reis com arte de Zoe Passos e Daniel Taglieri
“É óbvio que tem coisas que são indiscutíveis, do ponto de vista dos valores humanos, que estão sendo atacadas e, nesse caso, temos de ser firmes”, ressalta. “Mas nega-se também a existência dos deficientes e dos alcoólatras, e isso é o que mais me interessa discutir hoje.”
Ao focar em temas relacionados à incapacidade, Nando Reis afasta-se do debate no qual se viu metido após chegar a pedir a prisão de Bolsonaro em um show. Mas o lançamento do álbum quádruplo com 30 músicas, sendo 26 inéditas e quatro regravações, extrapola o aspecto temático: o trabalho prova que artista criativo e exuberante ele é.
O projeto é composto de um álbum intitulado Uma, outro chamado Estrela e mais um com o nome de Misteriosa. O quarto e último disco, que é tratado como bônus e tem três das quatro regravações, é intitulado Revelará o Segredo. Antes de chegar às plataformas de streaming, todos foram lançados em vinil.
O projeto Uma Estrela Misteriosa revela o vigor do trabalho de Nando Reis tanto do ponto de vista sonoro quanto temático. As canções, sejam elas autobiográficas, reflexivas, místicas ou abstratas, são composições bem elaboradas, com melodias e arranjos cuidadosos.
“Foi uma empreitada de fôlego”, reconhece ele, que não lançava um álbum de inéditas desde Jardim-Pomar (2016). Segundo Nando, o projeto nasceu de forma despretensiosa, em 2022, após gravar duas músicas para um documentário do baterista americano e amigo de longa data Barrett Martin. No fim, acabou entrando no estúdio mais algumas vezes sob a produção do próprio Martin para gravar uma leva de canções.
“Amo as músicas de sucesso. Graças a elas, criei cinco filhos, graças a elas, eu vivo”
“Sou um artista independente e financio o meu trabalho. Não tenho estúdio em casa e gravo com banda. Tive o senso de aproveitar e gravar o que fosse possível, para depois ver o que fazer”, relata, para explicar de que forma foi elaborado o grandioso projeto.
“Nos anos 1980, a gente lançava um LP por ano. Lançar, ao mesmo tempo, tantas músicas assim é curioso e inesperado”, admite. O volume foi, em si, um desafio. Nando conta ter buscado, até o último instante, dar unicidade ao projeto, sem que as músicas soassem parecidas. O resultado foi alcançado e revela um artista de várias nuances.
“Por que faço música?”, questiona-se, para em seguida responder: “Para expressar meu pensamento e para expurgar meus sentimentos. Sou um artista que usa como substrato da criação a experiência pessoal. Tudo que a gente faz é biográfico. Tudo diz respeito a quem somos”.
Nando afirma que é, acima de tudo, um compositor: “A composição, para mim, é o suprassumo da realização pessoal e profissional. É através da composição que não só me inspiro no mundo como me organizo e consigo suportar a vida”.
Ao refletir sobre o novo trabalho, o artista não nega que compor e gravar 30 músicas não deixa de ser um “gesto de vaidade”. “Sou cantor por consequência, por necessidade”, diz. A composição, por sua vez, é sempre um processo complexo – mesmo para alguém que, como ele, parece ter letras e melodias brotando o tempo todo de dentro de si.
“Não basta só ter o desejo e a experiência de compor. Não é uma coisa tão objetiva assim e não garante que atenda às minhas expectativas”, diz. “Sou muito aflito com isso. Também tenho uma alta expectativa a meu respeito, e isso pode transformar-se em uma crítica muito severa: ‘Será que vou conseguir compor uma música linda e que ainda faça sucesso?’.”
O começo do caminho. Nos Titãs, banda da qual fez parte por duas décadas, compôs vários hits, como Os Cegos do Castelo e Pra Dizer Adeus – Imagem: Acervo pessoal/Nando Reis
Nando Reis é autor de vários sucessos de qualidade. Nos Titãs, onde iniciou a carreira e a banda da qual fez parte por 20 anos, entre as inúmeras canções que produziu estão Os Cegos do Castelo e Pra Dizer Adeus – esta segunda, em parceria com Tony Bellotto.
Na carreira solo, ele despontou com Relicário e Por Onde Andei. Cássia Eller gravou outro de seus grandes sucessos, O Segundo Sol, além de ter registrado Relicário, em dupla com o autor. São também de sua lavra, ao lado de Samuel Rosa, dois hits da extinta banda Skank: É Uma Partida de Futebol e Resposta. A conhecida Do Seu Lado, gravada pelo também mineiro Jota Quest, é outra composição de sua autoria que tocou muito no rádio.
“Amo as músicas de sucesso. Graças a elas criei meus cinco filhos, graças a elas eu vivo. Posso fazer um disco quádruplo porque me financio. Se dependesse de gravadora, isso jamais teria acontecido”, faz questão de pontuar.
Com o denso Uma Estrela Misteriosa, Nando Reis credencia-se ao título de principal artista emergido da geração do pop rock brasileiro dos anos 1980. Trata-se de um músico versátil, talentoso e fértil.
“Quero mostrar que sou um compositor atuante, com meus 61 anos. Estou em grande forma, há oito anos sem beber. Para mim, isso era um fantasma”, diz, retomando o sentimento que, do ponto de vista íntimo, parece ser a principal marca de seu novo trabalho. “Inúmeras coisas me impulsionam, me fazem trabalhar hoje. Gosto demais de compor. Preciso compor.” •
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob o segundo sol’
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