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Outro ponto para a Coreia do Sul

Quatro anos após vencer o Oscar na categoria principal, com o filme ‘Parasita’, o país passa a ostentar a primeira autora asiática com um Nobel

Outro ponto para a Coreia do Sul
Outro ponto para a Coreia do Sul
Traduções. A escritora, de 53 anos, teve três de seus livros publicados no Brasil – Imagem: Jean Chung
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Foi uma grande surpresa quando, na quinta-feira 10, a sul-coreana Han Kang foi anunciada como a ganhadora do Nobel de Literatura de 2024. Ela estava longe de ser a favorita, não porque falte qualidade à sua obra, mas porque, embora conhecida, não tem a proeminência de alguns dos favoritos.

No Ladsbroke, a bolsa de apostas mais famosa da Inglaterra, a escritora de 53 anos aparecia na 40a posição, sendo superada pela chinesa Can Xue, a favorita, e nomes bem mais conhecidos no cenário editorial, como a canadense ­Margaret Atwood, o britânico de origem indiana Salman Rushdie e o japonês pop Haruki Murakami.

Han Kang começou a se tornar conhecida no mundo ocidental com A Vegetariana, que, em 2016, ganhou o prestigioso Booker Prize internacional. Publicado na Coreia do Sul em 2007, o livro já teve duas edições no Brasil: uma da Devir, de 2013, que se esgotou, e outra, em nova tradução, publicada pela Todavia, em 2018. O livro, não sem surpresa, está no topo dos mais vendidos na Amazon brasileira desde o anúncio.

Trata-se de um romance marcante, ao qual é impossível ficar indiferente – seja positiva, seja negativamente. De certa forma, a condução da narrativa, com seus exageros e momentos de violência gráfica, lembra bastante o cinema coreano.

A Vegetariana. Han Kang. Tradução: Jae Hyung Woo. Todavia (176 págs., 74,90 reais) – Compre na Amazon

O livro, inclusive, teve uma adaptação cinematográfica, em 2009, com direção de Lim Woo-Seong, e foi exibido em diversos festivais pelo mundo, inclusive no Brasil. O longa-metragem não chegou, porém, ao nível de excelência da prosa.

A autora, nesse romance, criou uma história de horror corporal protagonizado por uma mulher que se recusa a comer carne, e vê sua família, viciada em carne, escandalizar-se com isso.

O título pode, num primeiro momento, ser enganoso: não se trata de um livro sobre as dores e alegrias do vegetarianismo. A história de Yeong-Hye, a protagonista, é contada em três partes – nenhuma narrada por ela. A primeira estranheza causada pelo romance é o silenciamento dessa mulher. A segunda é quando seu corpo se transforma e a fantasia invade a narrativa realista.

Han Kang une a capacidade de comunicação com o grande público à sofisticação artística

A Academia Sueca, que concede o Nobel, justificou o prêmio pela “intensa prosa poética” de Han, “que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”. Não poderia haver melhor definição para a escritora que, no Brasil, teve outras duas obras publicadas pela Todavia: Atos Humanos (2021) e O Livro Branco (2023).

O primeiro é um relato sobre a tragédia ocorrida, em 1980, na cidade coreana de Gwangju, quando o exército reprimiu um levante estudantil, que resultou em milhares de mortes.

O segundo transita entre a ficção, a poe­sia e a autobiografia. Nele, a escritora medita sobre a vida e a morte, a partir das lembranças de sua pequena irmã, que morreu duas horas depois de nascer. O livro aborda os poucos minutos de vida da bebê e o trauma da mãe, que tinha então 22 anos.

Atos Humanos. Han Kang. Tradução: Ji Yun Kim. Todavia (192 págs., 70,90 reais) – Compre na Amazon

Han Kang, original da cidade de ­Gwangju, cidade do sudoeste do país, nasceu em uma família de escritores. Ela é filha do romancista Han Seung-won e irmã dos também escritores Han Dong-rim e Han Kang-in. Em entrevista, ela sempre conta ter crescido cercada por livros, tanto coreanos quanto estrangeiros traduzidos.

É difícil não pensar que, além do ambiente doméstico, a autora, primeira asiática a ganhar o Nobel de Literatura, tenha sido nutrida também pela chamada Hallyu, a onda cultura sul-coreana que, a partir da virada do século XXI, foi se espalhando pelo mundo. O marco mais pop desse movimento foi o clipe Gangnam ­Style, do cantor Psy, de 2012. Hoje, o K-pop, na música, e os K-dramas, bastante parecidos com as novelas brasileiras, são altamente consumidos pelos jovens do Ocidente.

Mas a onda sul-coreana inclui também, no audiovisual, um forte cinema de autor, com grande presença no circuito de festivais, que teve, entre seus percussores, Park Chan-Wood (Oldboy) e Kim Ki-Duk (Casa Vazia), e tem hoje, como grande estrela, Bong Joon-ho, diretor de Parasita, premiado em Cannes e primeiro longa-metragem em língua estrangeira a ganhar a principal categoria no ­Oscar, em 2020.

É do conhecimento de muita gente o investimento do governo no país nas indústrias da música e do audiovisual, mas talvez menos evidente seja o apoio à literatura. Só que ele existe. Em 1996, por exemplo, o governo criou um instituto de tradução destinado a difundir a literatura e a cultura coreana pelo mundo.

O Livro Branco. Han Kang. Tradução: Natália T. M. Okabayashi. Todavia (160 págs., 68,90 reais) – Compre na Amazon

Além de promover livros a ser traduzidos, o centro trabalha com a formação de profissionais aptos a traduzir a língua coreana. Tampouco se pode desconsiderar que as famosas bandas K-pop impulsionaram a leitura da literatura do ­país, pois, não raramente, os artistas são fotografados ou filmados lendo.

Curiosamente, a produção coreana que chega ao mundo ocidental consegue confundir os círculos um dia definidos como cultura de massa e alta cultura – hoje, mais habitualmente chamados de popular e cult. E A Vegetariana – assim como acontece com o filme Parasita – trafega com fluidez entre essas duas categorias.

No caso de Han Kang, é inegável que a autora, agora uma ganhadora de Nobel, sempre demonstrou a capacidade de comunicação com um grande público sem que com isso precisasse abrir mão da qualidade e da sofisticação artística. •

Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Outro ponto para a Coreia do Sul’

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