Cultura
Donald Trump, o personagem
Os criadores de ‘O Aprendiz’ têm enfrentado a seguinte pergunta: alguém quer ver um filme sobre Trump?


Em 1973, Donald Trump era um herdeiro do setor imobiliário do Queens, faminto e desajeitado, que tentava ser respeitado em Nova York. Não especialmente inteligente ou charmoso e sem um plano para enfrentar um processo contra a empresa da família por discriminação contra inquilinos negros, o jovem tateava em direção ao seu sonho: abrir um hotel luxuoso perto da estação Grand Central. Mas isso foi até que ele conhecesse Roy Cohn, o promotor valentão do senador Joseph McCarthy que virou confidente de Richard Nixon, num clube elegante de Nova York.
Essa é a cena inicial de O Aprendiz, que estreia nos cinemas brasileiros na quinta-feira 17. Escrito pelo antigo cronista de Trump na revista Vanity Fair Gabriel Sherman e dirigido pelo iraniano-dinamarquês Ali Abbasi, o filme retrata a ascensão do jovem Trump na sociedade de Nova York, nas décadas de 1970 e 1980, por meio das táticas desavergonhadas de Cohn – cuja saúde ia piorando devido ao HIV.
A questão que persegue o filme, estrelado por um Sebastian Stan enfeado como Trump e Jeremy Strong, de Succession, como Cohn, é: alguém quer assistir a um filme sobre Trump? Depois de algumas críticas positivas no festival de Cannes, em maio, surgiu outra pergunta: alguém conseguiria assisti-lo?
“Não me importo que as pessoas nos ataquem ou nos elogiem”, disse Abbasi. “O que me incomoda, o que realmente dói, é o boicote, ou a censura, que efetivamente sofremos.” Mesmo com duas estrelas no elenco, o filme seguiu um caminho tortuoso até os cinemas. Após a estreia em Cannes, o grupo de Trump emitiu uma carta contra o filme – o que não é nada surpreendente.
O Aprendiz retrata, entre outras coisas, Trump estuprando a primeira esposa, Ivana (Maria Bakalova) – um relato fictício –, e fazendo lipoaspiração. Dan Snyder, um bilionário pró-Trump envolvido com a Kinematics, empresa que colocou capital no filme, supostamente tentou bloquear seu lançamento. Possivelmente assustados com as ameaças legais, vários estúdios e plataformas de streaming desistiram. Na última hora, a Briarcliff Entertainment apareceu com um plano de distribuição doméstica.
Desde o início, foi difícil vender o filme. “A trumplândia acha que estamos fazendo um trabalho de sucesso com Trump, mas, enquanto estávamos fazendo o filme, nossos amigos liberais em Hollywood pensaram que estávamos dando oxigênio demais para ele”, disse Abbasi. “Algumas pessoas nos disseram que não odiávamos Trump o suficiente.”
O filme, que Sherman concebeu e escreveu pela primeira vez em 2017, é uma obra baseada em um registro histórico condenatório que está tentando fazer o que talvez seja impossível nos EUA hoje: falar sobre Trump sem nenhuma bagagem política e, em nome da arte baseada em fatos, pôr de lado os sentimentos sobre o homem. “Foi escrito como arte, e o que as pessoas tirarem dele é por sua própria opção”, disse Sherman. “É uma história universal sobre o aprendiz que supera o mestre.”
“O que me incomoda, o que realmente dói, é o boicote, ou a censura, que efetivamente sofremos”, diz o cineasta Ali Abbasi
Nada em O Aprendiz é desconhecido para quem tenha prestado atenção em Trump além de sua carreira política recente. O filme retrata seu relacionamento gélido e frustrante com o pai; o relacionamento mais afetuoso com seu irmão mais velho alcoólatra Fred; o namoro desajeitado com Ivana; e seu olhar cego para a homossexualidade de Cohn.
E há o que seja talvez o mais condenável de tudo: suas trapaças, soluções alternativas e mentiras descaradas para o conselho de habitação e para a imprensa e as maneiras como as elites de Nova York deram legitimidade a um fanfarrão.
“Há um darwinismo social embutido na sociedade americana que não veio com Trump e não vai acabar com ele”, disse Abbasi, que sustenta que O Aprendiz “não é um filme sobre Trump, mas sobre o surgimento do personagem Donald Trump através do tempo e por meio de relacionamentos muito específicos”.
A cena mais perturbadora – e que tem rendido manchetes – é aquela em que ele estupra Ivana, no fim dos anos 1980. “Senti que o filme devia abordar esse aspecto da personalidade dele. Seria uma passada de pano se não mostrássemos isso”, disse Sherman, observando que Trump foi acusado de modo plausível de agressão sexual por pelo menos uma dúzia de mulheres e considerado responsável pela agressão de E. Jean Carroll, ex-colunista da revista Elle.
Essa é uma das várias cenas difíceis de suportar e, naturalmente, atraiu a ira dos republicanos – o ex-candidato presidencial Mike Huckabee pediu publicamente um boicote ao filme.
Comparsas de Trump à parte, O Aprendiz enfrenta uma batalha difícil para ser visto. ABC e CBS se recusaram a exibir comerciais do filme durante os debates da campanha. E há ainda o obstáculo de atrair o público para ver um filme de duas horas sobre um homem do qual a maioria dos norte-americanos tem uma opinião formada, e uma metade sólida preferiria ver menos. “As pessoas estão trazendo muitos preconceitos para este filme”, disse Sherman, “mas se elas apenas se permitirem sentar no cinema e se surpreender acho que terão um momento realmente emocionante.”
Tanto Abbasi quanto Sherman lançaram O Aprendiz como muitas coisas: um filme sobre Nova York numa era passada, sórdida e formativa; um conto sobre um sistema corruptível; e uma história de origem. Mas trata-se, antes de tudo, de um retrato dramatizado de Donald Trump, a pessoa. Ele “não é um alienígena, ele é humano”, disse Sherman. “Temos de ver essas pessoas, mesmo discordando delas, para que, talvez, da próxima vez que houver um Trump surgindo o reconheçamos como tal.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Donald Trump, o personagem’
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