Economia
Uma nova moeda de reserva
O arranjo alternativo seria um potencial divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais


Os BRICS vêm discutindo há algum tempo a possibilidade de construir arranjos alternativos ao dólar norte-americano. A atual ordem (ou desordem) monetária e financeira internacional, dominada pelos Estados Unidos, mostra-se crescentemente disfuncional e insegura. O sistema foi transformado em arma geopolítica para aplicação de sanções, punições e confiscos.
Nas últimas semanas, estive em Moscou e participei de três seminários sobre essa temática, em eventos precursores da cúpula dos líderes dos BRICS, que ocorrerá em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Tento fazer aqui um resumo das conclusões a que cheguei.
A Rússia, que presidiu os BRICS em 2024, preparou uma proposta detalhada para um sistema alternativo de pagamentos transfronteiriços baseado em moedas nacionais – um passo importante na direção de um novo arranjo monetário e financeiro internacional.
Até agora, no entanto, poucos avanços foram feitos no que diz respeito à questão mais fundamental, que seria a criação de uma nova moeda como alternativa ao dólar. E mesmo a discussão da proposta russa de um novo sistema de pagamentos ainda é incipiente. O Brasil presidirá os BRICS em 2025 e terá a oportunidade de coordenar a discussão, aprofundar a proposta da Rússia e preparar novos passos.
Limites às transações em moedas nacionais
O progresso durante a presidência russa na elaboração de alternativas ao viciado sistema atual de pagamentos internacionais é, sem dúvida, uma iniciativa muito bem-vinda. Também vêm avançando as transações bilaterais em moedas nacionais entre os BRICS e entre os BRICS e outros países.
Contudo, essas iniciativas têm suas limitações. Para que a “desdolarização” funcione plenamente é preciso que exista uma moeda de reserva alternativa. Sem isso, o sistema alternativo não permite registrar superávits e déficits persistentes entre os países.
Um exemplo: a Rússia tem um superávit substancial com a Índia. O comércio e outras transações são realizados principalmente em suas moedas nacionais. Portanto, a Rússia vem acumulando grandes estoques de rupias. O Banco Central russo pode não querer manter essa moeda permanentemente em suas reservas, talvez porque a rupia não seja totalmente conversível e haja dúvida sobre sua estabilidade. Quais são as suas opções? A Rússia pode tentar dispor desses excedentes em rupias buscando oportunidades de investimento na Índia ou intensificando esforços para comprar mais bens e serviços desse país. Mas isso pode ser difícil e demorado. Ela também pode usar essas rupias em terceiros países que tenham interesse em obter a moeda, devido à proximidade econômica com a Índia. Isso também pode ser difícil, levando as vendas de rupias com desconto. Essas opções são claramente second-best. Daí a necessidade de uma moeda de reserva.
Uma nova moeda de reserva, a NMR
Como poderia ser essa nova moeda? Vou tentar esboçar um caminho que parece promissor. O espaço não permite apresentá-lo senão de modo sintético e talvez caricato. Para uma explicação mais completa, remeto ao trabalho que preparei para um dos eventos em Moscou (BRICS: Geopolitics and monetary initiatives in a multipolar world – how could a new international reserve currency look like?, 23 de setembro de 2024, www.nogueirabatista.com.br).
Vamos chamar essa nova moeda de NMR, sigla para “nova moeda de reserva”. A NMR poderia ter as seguintes características: não seria uma moeda única, que substituiria as moedas nacionais dos países participantes. Seria uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais e os Bancos Centrais continuariam a existir em seus formatos atuais.
A NMR não teria existência física na forma de papel-moeda ou moeda metálica. Seria uma moeda digital, análoga às moedas digitais de Bancos Centrais que estão sendo criadas em vários países.
Os países participantes poderiam constituir um banco emissor que seria responsável por criar NMRs e também por emitir títulos nos quais a nova moeda seria livremente conversível. Esses títulos seriam integralmente garantidos pelos Tesouros Nacionais dos países participantes.
Ao presidir os BRICS, o Brasil poderá coordenar a discussão e aprofundar a proposta russa
Um primeiro passo poderia ser a criação de uma unidade de conta para a NMR, uma cesta de moedas semelhante aos DES (Direitos Especiais de Saque) do FMI. Nesta cesta, o peso das moedas dos países envolvidos corresponderia à sua participação no PIB do grupo.
Bem, esse passo relativamente simples, proposto há muitos anos por economistas russos, já poderia ter sido dado. A razão para o lento progresso parece ser a falta de consenso. Há relatos de que a Índia e a África do Sul, presumivelmente por razões políticas, se opõem à ideia.
Na ausência de consenso, cabe perguntar se não poderíamos avançar com base em uma coalizão de países aptos e dispostos. A NMR poderia perfeitamente ser criada por um subconjunto dos BRICS. Os outros se juntariam mais tarde. Isso é recomendável, mas esbarra na arraigada tradição de consenso dos BRICS, que marca a atuação do grupo desde o seu início, em 2008. No entanto, se nos apegarmos a essa tradição, receio que não se chegue a lugar algum.
A alternativa a algo como a NMR seria a substituição gradual do dólar americano pelo renminbi chinês, a moeda da potência emergente. Isso já está acontecendo, em certa medida. Mas parece duvidoso que se possa avançar muito por essa via.
Não se deve perder de vista que a potência emergente é um país de renda média. A China teria dificuldade de atender a certos pré-requisitos para que o renminbi possa estabelecer-se como moeda internacional em grande escala. Ela estaria disposta, por exemplo, a tornar o renminbi totalmente conversível? Consideraria abandonar as restrições à conta de capital e os controles cambiais que protegem a economia chinesa da instabilidade das finanças internacionais? Aceitaria a apreciação cambial decorrente do aumento da demanda por renminbi como ativo internacional? Essa apreciação não prejudicaria a competitividade internacional e o dinamismo da economia chinesa? É claro que a tendência à apreciação poderia ser contida pela acumulação de reservas internacionais adicionais. Mas onde a China depositaria essas reservas adicionais? Em ativos denominados em dólar, euro ou iene? De volta à estaca zero.
Portanto, os BRICS, ou um subconjunto de países dos BRICS, deveriam preparar-se para criar uma nova moeda de reserva, que seria um potencial divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais. Paralelamente, devem continuar com a expansão das transações internacionais em moedas nacionais e iniciar a construção de um sistema de pagamento alternativo, invulnerável às sanções dos EUA e de seus aliados. •
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma nova moeda de reserva’
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