Opinião

assine e leia

Desvendando a incúria da Enel

O poder do mercado bloqueia a direção inteligente dos mecanismos dos negócios privados pela sociedade

Desvendando a incúria da Enel
Desvendando a incúria da Enel
Apagão causou prejuízo milionário aos comércios de SP. Foto: Miguel SCHINCARIOL / AFP
Apoie Siga-nos no

O clamor popular desencadeado contra as omissões e desleixos da empresa Enel suscitou a exibição de manchetes na mídia corporativa e em outras partes do moderno sistema de comunicação.

No corpo dos textos ou nas vozes dos comentaristas da tevê não faltaram condenações ao desempenho da empresa encarregada de administrar a geração e distribuição de energia elétrica.

Desgraçadamente, os gritos de protesto das mídias descuraram da questão basilar que afeta os serviços públicos no Brasil e no mundo. À exceção do site GGN, comandado pelo jornalista, e valoroso conhecedor de economia, Luis Nassif, as observações registradas na mídia negligenciaram a rediscussão dos danos causados pela fúria privatizante dos serviços públicos.

A energia elétrica é, inexoravelmente, um bem público. Não por acaso, muitas manifestações de protesto ostentam faixas maldizendo a privatização das empresas de energia: “Eletricidade não é mercadoria”.

Seria de bom alvitre afirmar que Saúde e Educação não podem escapar da condição de bens públicos. Dizem respeito à criação e sustentação de condições sociais adequadas à proteção e desenvolvimento da vida humana. Suspeito que as condições de existência e sobrevivência de mulheres e homens nas sociedades e economias de mercado não podem prescindir da construção de arcabouços estatais – empresas e instituições reguladoras – destinados a suprir garantias para a vida pública.

Arriscamos considerar as razões, digamos, sistêmicas e estruturais que moveram e movem a sanha de privatizações.

As mudanças na composição da riqueza capitalista promoveram transformações nas estratégias das empresas e explicam a combinação entre as políticas econômicas de austeridade e a sanha das privatizações de bens públicos, sobretudo os chamados monopólios naturais, energia e saneamento básico.

A onda de privatizações obedece à lógica patrimonialista e rentista do moderno capital financeiro, em seu fu­ror de aquisições de ativos já existentes. Nada tem a ver com a qualidade dos serviços prestados, mesmo porque os exemplos são péssimos. Em geral, no mundo, a qualidade dos serviços prestados pelas empresas privatizadas declinou, acompanhando o aumento de tarifas e a deterioração dos trabalhos de manutenção.

Inverteu-se a relação entre os recursos destinados ao investimento em novas empresas e aqueles utilizados para propiciar a elevação “solidária” dos ganhos dos acionistas e a remuneração dos administradores (stock options). A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos açoitadas com o guante da “marcação a mercado”.

O economista nobelizado Joseph ­Stiglitz disparou seus arcabuzes nas concepções privatistas:

“A riqueza originada da apropriação rentista, que vou chamar de renda-riqueza, constrange e expulsa a formação de capital (produtivo). A fraqueza da formação de capital no período recente está relacionada com o crescimento do rentismo da renda-riqueza, o que levou à estagnação econômica. Ainda mais grave, o poder de mercado foi utilizado para prejudicar a inovação: há evidência de um declínio acentuado no ritmo de criação de novas firmas inovadoras”.

Os ganhos de produtividade gerados pelas novas tecnologias estão escondidos nos calabouços construídos pelo poder de mercado das grandes empresas que se apropriam do valor criado: as poderosas sobem as margens de lucro e destinam seus ganhos parrudos à recompra das próprias ações e ao pagamento de dividendos. Os salários modorrentos, a letargia do investimento empresarial, a “geração de valor” para os acionistas e a aflitiva concorrência pela busca de resultados a curto prazo espelham o poder de monopólio das grandes empresas.

Keynes advogou um papel central do Estado para coibir os efeitos danosos da busca desaçaimada pela riqueza. Esses impulsos precisam ser neutralizados mediante a ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, mediante a atuação de “corpos coletivos intermediários”; como, por exemplo, a constituição de empresas e bancos públicos encarregados de auxiliar o investimento privado.

Keynes acreditava na direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados; particularmente os processos que envolvem as decisões de investimento, ou seja, a criação de riqueza nova. “Creio que uma socialização bastante completa do investimento será o único meio de se aproximar do pleno emprego, ainda que isso não exclua qualquer forma de cooperação entre a autoridade pública e a iniciativa privada.” •

Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desvendando a incúria da Enel’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo