

Opinião
Jogada de risco
É preciso cautela na regulação das apostas virtuais, para que elas não se convertam em espaços de infiltração do crime organizado



É a Constituição o elemento responsável pela demarcação das condições e possibilidades das relações econômicas e sociais. Ademais, as atividades econômicas atribuídas aos particulares e ao Estado, de forma exclusiva ou não, excepcional ou não, e o nível de intervenção estatal pela regulação são uma questão que se coloca, antes de tudo, pelo momento histórico, bem como pelo estágio de evolução da nossa sociedade.
Nesse cenário, a exploração das loterias no Brasil sempre ocorreu através da direta e imediata exploração estatal, ao passo que diversas atividades lotéricas sempre foram – e ainda são – reputadas como ilegais. Ocorre que, nos últimos anos, constatamos um movimento que, ao contrário da trajetória publicista de exploração das loterias, visa atribuir à iniciativa privada, por meio do regime jurídico de autorização administrativa, a possibilidade de exploração de determinados tipos de apostas.
As atividades lotéricas, até então, eram qualificadas pelo nosso Direito como serviços públicos, sujeitando-as, consequentemente, ao regime jurídico-administrativo publicista de prestação, fiscalização e controle.
O enquadramento das atividades lotéricas como serviços públicos foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 492 e nº 493. Na ocasião, o STF também reconheceu que a União não detém o monopólio dos referidos serviços, embora detenha, nos termos do entendimento ali sufragado, a competência privativa para legislar sobre a matéria.
Entretanto, não caiu por terra apenas o monopólio da União sobre a exploração das atividades lotéricas, estabelecido pelo vetusto e centralizador Decreto Lei nº 204/1967. Não por decisão judicial, mas por obra do legislador federal, as chamadas apostas virtuais de cotas fixas foram regulamentadas à luz do modelo de autorização administrativa.
A Lei nº 14.790, de 2023, dispôs sobre as chamadas apostas virtuais de cota fixa, estas baseadas em eventos reais de temática esportiva ou em eventos virtuais de jogos online. Mesmo que a referida lei tenha previsto que somente são elegíveis à autorização para exploração de apostas de cota fixa as pessoas jurídicas que, dentre outros requisitos, detenham comprovado conhecimento e experiência em jogos, apostas ou loterias e, ainda, que essas mesmas pessoas jurídicas são obrigadas a implantar políticas, procedimentos e controles internos relativos à prevenção da lavagem de dinheiro, constatamos um severo déficit de rastreabilidade e confiabilidade nesse arranjo, dificultando o controle, a fiscalização e a regulação.
Ainda que o agente operador seja obrigado a adotar procedimentos de identificação que permitam verificar a identidade dos apostadores e deva desenvolver sistemas e processos eficazes no monitoramento da atividade do apostador, estamos muito aquém de mecanismos que, de forma efetiva, sejam capazes de inibir atividades fraudulentas e criminosas, em detrimento da saúde pública e da economia popular.
É fundamental que a legislação seja racionalizada para fixar o universo subjetivo, bem como aquelas pessoas jurídicas que podem obter a autorização para a exploração das apostas virtuais. Deve-se instituir critérios de rastreabilidade e de confiabilidade de todos aqueles que sejam sócios, acionistas e administradores em toda a cadeia de controle, isso tudo em conformidade com as melhores práticas existentes em outros países, tais como na Alemanha (Glücksspielstaatsvertrag, 2021), no Reino Unido (Gambling Act, 2005) e na França (Loi nº 2010-476). Deve-se exigir, por exemplo, que essas pessoas tenham vida social compatível com a sensibilidade das atividades exploradas.
É essencial, ainda, que a nossa legislação seja aprimorada para estabelecer regras rígidas de prestação do serviço e que obriguem a pronta comunicação de atividades suspeitas e que demandem, à luz da saúde pública, o controle do vício. Por fim, é imprescindível que, com o custeio dos operadores, seja criada uma estrutura de fiscalização no formato de agência reguladora, autarquia especial esta que, com maior autonomia e com elevada expertise técnica, deve regular e fiscalizar o setor.
Na transição entre o regime de atividades econômicas reservadas ao Estado para o de competição no setor de infraestrutura brasileiro, a regulação estatal procurou adotar cautelas inibidoras da transformação de monopólios públicos em privados. Também é preciso cautela na regulação das apostas virtuais. Elas não podem se constituir em espaços de infiltração do crime organizado, o qual é capaz de nutrir-se e retroalimentar-se dentro desse ambiente difuso fortemente suscetível à não rastreabilidade. Bingo! •
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogada de risco’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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