Saúde
O que se sabe (e o que ainda falta esclarecer) sobre a transmissão de HIV em transplantes no Rio
Laboratório privado que testou órgãos transplantados não tinha kits de exames e não comprovou compra dos itens, levantando dúvidas sobre a autenticidade dos laudos


Em um caso sem precedentes na história da saúde pública brasileira, seis pacientes que esperavam por transplantes no Rio de Janeiro testaram positivo para o vírus do HIV após receberem órgãos de dois doadores soropositivos. As circunstâncias do incidente ainda estão sendo investigadas, e muitas questões permanecem sem resposta.
O que se sabe
O Ministério Público do Rio de Janeiro, o Ministério da Saúde, a Polícia Civil e o Conselho Regional de Medicina (Cremerj) estão à frente das investigações. A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ) classificou o episódio como “inadmissível” e ressaltou que, apesar do incidente, o estado realizou mais de 16 mil transplantes desde 2006, sempre com “trabalho de excelência”.
Os exames que atestaram a higidez dos órgãos foram realizados pelo PCS Lab Saleme, um laboratório privado contratado em uma licitação emergencial em dezembro de 2023. O contrato, no valor de 11 milhões de reais, foi firmado para que a empresa realizasse testes sorológicos nos órgãos doados.
O PCS Lab Saleme, localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, pertence a Matheus Sales Teixeira Bandoli Vieira, primo do ex-secretário de Saúde e atual deputado federal Doutor Luizinho (PP-RJ). Durante a licitação, Luizinho ainda era o responsável pela pasta.
A Coordenadoria Estadual de Transplantes e a Vigilância Sanitária Estadual já interditaram o laboratório. A inspeção revelou que o PCS Lab não possuía kits para a realização dos exames e não apresentou documentos que comprovassem a compra dos materiais necessários — colocando em dúvida a veracidade dos laudos emitidos para os órgãos contaminados.
Em resposta imediata, a SES-RJ transferiu todos os exames realizados pelo PCS Lab para nova testagem no Hemorio. Além disso, material genético armazenado de 286 doadores será reanalisado, o que permitirá uma nova verificação dos dados.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro deu início, nesta segunda-feira 14 a uma operação para cumprir 11 mandados de busca e apreensão e então tentar prender pessoas envolvidas no caso. O sócio da PCs Labe Saleme, Walter Vieira, já foi detido. É ele médico ginecologista e assina um dos laudos que apontou falso negativo para HIV no órgão transplantado.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, divulgou um vídeo nas redes sociais afirmando que o ministério tomará todas as medidas cabíveis e prestará assistência às famílias dos pacientes. Uma auditoria emergencial também foi ordenada para investigar o ocorrido.
Em nota enviada a CartaCapital, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro informou que abriu uma sindicância para investigar as denúncias. “A situação é gravíssima, e o Cremerj reafirma seu compromisso de apurar os fatos com rigor. A segurança dos pacientes é fundamental para o bom exercício da medicina no estado”, disse Walter Palis, presidente da instituição. O processo investigativo corre em sigilo.
A infectologista e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, Lígia Pierrotti, também destaca a gravidade do caso. “O Brasil é o quarto maior país em número de transplantes, e isso representa um enorme avanço desde a década de 1960. Desde 2006, mais de 16 mil transplantes foram realizados, salvando muitas vidas e garantindo qualidade de vida aos pacientes”, destaca.
Como o caso foi descoberto
O primeiro caso foi descoberto em 10 de setembro, quando um paciente transplantado apresentou sintomas neurológicos e, após exames de sangue, foi diagnosticado com HIV. Ele havia recebido um coração em janeiro deste ano.
Com a suspeita, as autoridades revisitaram os exames do órgão doado e solicitaram uma contraprova. A coleta realizada pelo laboratório em janeiro incluía rins, fígado, coração e córnea de um mesmo doador, todos supostamente negativos para o vírus. No entanto, outros receptores, com exceção de uma paciente que recebeu a córnea, testaram positivo para HIV. Um dos pacientes veio a falecer pouco após o transplante, mas sua morte foi atribuída a complicações pré-existentes.
Em 3 de outubro, outro transplantado apresentou sintomas e também testou positivo para HIV. Esse paciente havia recebido um órgão de outro doador, cujo exame, realizado em 25 de maio, também não indicava a presença do vírus.
O que ainda é preciso esclarecer
Apesar das ações emergenciais, muitas perguntas seguem sem resposta. Por que o laboratório responsável por testar os órgãos foi contratado sem os recursos necessários para realizar os exames? E como, exatamente, o processo de checagem dos órgãos contaminados falhou?
Além disso, ainda não está claro o impacto real sobre os pacientes transplantados. Pierrotti destaca que a modernização dos tratamentos antirretrovirais oferece qualidade de vida e não representa risco significativo para os transplantados, desde que o tratamento adequado seja seguido. Também é seguro o transplante em pessoas com HIV, desde que feito com os devidos cuidados e seguindo os protocolos estabelecidos.
Outra dúvida diz respeito à cadeia de responsabilidade. Até o momento, não está claro qual foi o papel de cada órgão de fiscalização e controle, nem de que forma os laudos foram aprovados sem a devida verificação. O envolvimento de um primo do ex-secretário de Saúde na administração do laboratório também levanta questionamentos.
Há ainda a questão dos 286 doadores cujos órgãos foram testados pelo laboratório interditado. Existe o risco de que outros pacientes possam ter sido contaminados?
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