Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

assine e leia

Revolução em marcha

O desfecho do caso Diarra abala as bases do mercado de transferências no futebol mundial

Revolução em marcha
Revolução em marcha
O jogador Lassana Diarra. Foto: Divulgação
Apoie Siga-nos no

Passado o festival de fake news, cadeiradas e outros arroubos que assolam a política nacional, surge o retrato do Brasil em sua intimidade municipal. Os leitores já devem estar saturados das análises dos resultados eleitorais, então volto a me concentrar no esporte.

Na Europa, o caso Lassana Diarra promete revolucionar o futebol mundial. Hoje aposentado, o jogador teve passagens por grandes clubes europeus, como Arsenal, Chelsea, Paris Saint-Germain e Real Madrid, além de ter defendido a seleção da França em 34 partidas. Em 2014, o volante atuava no Lokomotiv Moscou, reclamou publicamente de uma redução salarial e, semanas depois, descobriu que seu contrato havia sido rescindido.

À época, o jogador recebeu uma proposta para jogar no Charleroi, da Bélgica, mas teve o certificado de transferência internacional negado. O Lokomotiv argumentou que a rescisão contratual ocorreu “sem justa causa”, porque o jogador havia se recusado a entrar em campo com salário reduzido.

Em 2016, o caso chegou à Câmara de Resolução de Disputas da Fifa, que condenou Diarra a indenizar o ­Lokomotiv em 10 milhões de euros pelos três anos que faltavam para o fim do contrato, além de suspender o atleta por 15 meses. Impedido de trabalhar, o volante ajuizou uma ação contra a Fifa e a liga de futebol da Bélgica. Anos se passaram, até o processo ser finalmente julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Os magistrados concluíram que o regulamento de transações de atletas da monárquica entidade internacional viola as leis da União Europeia, o que deve acarretar sérias repercussões no mercado de transferências do futebol mundial. O caso Diarra parece uma repetição do que se passou comigo décadas atrás, quando os clubes eram donos do “passe do jogador”. No meu processo, eu estava preso a um contrato com o Botafogo e precisei recorrer à Justiça para me tornar, em 1971, o primeiro atleta brasileiro com passe livre.

Além do caso Diarra, avolumam-se as críticas ao elevado número de partidas que os atletas são obrigados a disputar. No início de setembro, a Fédération ­Internationale des Associations de ­Footballeurs Professionnels (FifPro), uma espécie de sindicato global da categoria, pediu medidas de proteção para os jogadores, submetidos a uma carga de trabalho considerada excessiva em um calendário esportivo que não para de se expandir.

Há algumas semanas, o meia espanhol Rodri, do Manchester City, alertou que os atletas que disputam a Champions League, reformulada com mais clubes e mais partidas para disputar, cogitam até entrar em greve. “Se continuar assim, em algum momento não teremos outra opção. Não sei se vai acontecer, mas em todo caso é algo que nos preocupa, pois somos nós que sofremos”, disse Rodri, que na temporada passada participou de mais de 60 jogos, disputados pelo clube inglês e pela seleção da Espanha.

A FifPro considera uma “alta carga” disputar de 40 a 54 partidas por ano. Acima disso, seria uma “carga excessiva”. Um levantamento divulgado pela entidade revela, porém, numerosos casos de atletas submetidos a uma agenda ainda mais extenuante. Julian Alvarez, para citar um exemplo, foi relacionado para 83 jogos na temporada europeia passada. Darwin Núñez, Luis Díaz e Phil ­Foden disputaram 72 partidas cada um. Já Cristian Romero viajou mais de 160 mil quilômetros para jogos internacionais.

Outro sintoma desse calendário insano é a aposentadoria precoce de craques de primeira linha. Recentemente, Ilkay Gundogan, de 33 anos, anunciou que não defenderá mais a seleção da Alemanha. Ídolo do Manchester City e atualmente no Barcelona, o meia-campista afirmou que a decisão deve-se ao cansaço físico e mental decorrente da quantidade excessiva de jogos. Na última temporada, ele disputou 56 partidas.

Aos 34 anos, o espetacular Toni Kroos também anunciou que deixará os gramados após disputar a Eurocopa 2024 com a seleção alemã. “Gostaria de agradecer a todos que me receberam de coração aberto e confiaram em mim. Minha carreira como jogador de futebol termina neste verão depois da Euro. Como eu sempre disse, o Real Madrid é e será o meu último clube”, disse, em emocionada carta de despedida ao clube que o consagrou.

Mais recentemente, foi a vez de ­Andrés Iniesta, lenda da seleção espanhola e do Barcelona, anunciar sua aposentadoria. Não exatamente do esporte, mas das chuteiras. “Não posso ficar longe do futebol, foi a minha vida e continuará sendo. Agora, estou tirando a licença de treinador e esta é a minha próxima etapa”, anunciou o craque, aos 40 anos. “Tentarei voltar a fazer um grande trabalho, agora sem correr atrás da bola.” •

Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Revolução em marcha’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s