Cultura
Um avatar da sombra e do vício
Uma biografia baseada nos arquivos do artista atualiza Lou Reed como um profeta da libertação queer


Na noite de 13 de janeiro de 1966, a Sociedade de Psiquiatria Clínica de Nova York realizou seu jantar anual em um hotel na Park Avenue, em Manhattan. Serviram rosbife, vagens e batatinhas redondas. A atração cultural foi menos convencional: um artista local chamado Andy Warhol foi convidado a dizer algumas palavras, mas, em vez disso, fez uma apresentação multimídia com a banda que gerenciava.
Observados por 300 profissionais de medicina e seus cônjuges, de smokings e vestidos longos, os integrantes do Velvet Underground tocaram Heroin (Quando a heroína começa a fluir/ realmente não me importo mais) e Venus in Furs (Beije a bota de couro brilhante/ passe a língua pelas tiras).
“Acho que se pode se chamar essa reunião de uma erupção espontânea do id”, disse um médico, enquanto fugia do lugar, aos repórteres que Warhol havia posicionado no saguão. Outro disse: “Parece que uma ala inteira de uma instituição escapou”.
As frases não estavam totalmente fora de contexto. Edie Sedgwick, a estrela de Warhol que se contorcia no palco, tinha sido internada uma vez por seus pais ricos. E o líder e compositor da banda, Lou Reed, havia, no final da adolescência, recebido terapia eletroconvulsiva para tratar uma suposta esquizofrenia.
Embora o evento tenha sido uma forma atrevida de chamar atenção – que permitiu também que alguns artistas vivenciassem a fantasia de vingança contra os psiquiatras –, ele representou mais que isso. O Velvet Underground não era apenas um happening montado para chocar: foi a primeira plataforma para os talentos de Reed como músico e letrista.
Três meses após a apresentação, a banda gravaria uma das maiores canções de amor dos anos 1960, I’ll Be Your Mirror, marco da carreira de um astro que se tornaria também um avatar do lado sombrio da natureza humana, do vício, do desespero e do excesso.
“Rei de Nova York” foi o epíteto dado a ele por David Bowie, um fã obsessivo dos Velvets. E é também o título da biografia meticulosa, porém vívida, de Will Hermes, a primeira baseada no arquivo doado à Biblioteca Pública de Nova York pela viúva de Reed, a multiartista Laurie Anderson.
Hermes, habilmente, evoca as diferentes cenas em que Reed viveu, colocando-o no meio de um rico elenco de colaboradores, amigos e amantes. É como se ele atualizasse Reed para uma nova geração, particularmente como um profeta da libertação queer e da inconformidade de gênero.
E não é exagero. Uma de suas melhores músicas, Candy Says (1969), é uma evocação dolorosamente pungente da disforia de gênero. Em Make Up (1972), três anos após as manifestações os gays de Stonewall, ele proclamou: Agora estamos saindo, saindo dos nossos armários/Saindo para as ruas. De 1974 a 1977, sua parceira foi a mulher trans Rachel Humphreys.
Reed não é nada menos que uma figura complexa, um ídolo profundamente estranho. Ao mesmo tempo que mapeia seu progresso do subúrbio de Long Island para a vanguarda do centro da cidade, por meio da universidade e da tutela do poeta libertino Delmore Schwartz, ele mapeia não a cura, mas a exacerbação das feridas e falhas psíquicas de Reed.
John Cale, o outro gênio musical do Velvet Underground, achava que seu comportamento frequentemente assustador tinha origem em “medos sobre a sanidade” que o levavam a se esforçar para irritar as pessoas. Isso fazia com que se sentisse no controle, e se esquivasse da sensação de incerteza ou paranoia.
Lou Reed: O Rei de Nova York. Will Hermes. Tradução: Lívia de Almeida. Editora BestSeller (576 págs., 179,90 reais) – Compre na Amazon
A mesma insegurança que serviu como impulso profissional tornou-o egoísta e até violento. “Se você fosse a mulher na vida dele”, escreveu sua primeira esposa, Bettye Kronstad, “seria tão essencial para ele quanto um braço ou uma perna e seria tratada da mesma forma abusiva como ele tratava a si mesmo.”
Perfect Day, sobre um encontro que eles tiveram, é descrita por Hermes como o esboço de uma “cena feliz, mas instável”. Os companheiros de banda também suportavam esse peso, e poucas de suas colaborações duraram muito
Nesse contexto, a automedicação se mostraria quase inevitável. Hermes descreve cenas de arrepiar sobre o uso de drogas. Embora seja conhecido pela canção Heroin, Reed era viciado, sobretudo, em anfetaminas, em parte porque era fácil obtê-las com médicos, em parte porque estimulavam a produtividade.
A paranoia e a degradação por elas geradas foram direto para suas letras: Waves of Fear é um hino excruciante da abstinência; Street Hassle coloca a história sombria de uma overdose num ostinato de cordas hipnótico. Quando Reed, finalmente, ficou (quase) limpo, frequentou os Narcóticos Anônimos e foi confrontado por um dependente: “Como você ousa estar aqui? Você é a razão pela qual eu usei heroína!”
Apesar de não ter tido muito sucesso comercial ou crítico, Reed conseguiu influenciar as pessoas. A história do Velvet Underground é um pouco a história de uma influência que se espalhou após a ruptura. Hermes lista, por exemplo, Patti Smith, Talking Heads e Blondie.
O autor relata, diligentemente, a criação de álbuns ao longo das décadas de 1980 e 1990, quando os cheques pelo uso de suas músicas antigas em samples e publicidade começaram a chegar, tornando-o rico.
No emocionante capítulo final e no epílogo, ele descreve os últimos dias de Reed, em 2013 – seu corpo havia rejeitado o fígado transplantado, e ele sabia que estava morrendo. “Estou tão suscetível à beleza agora”, disse, enquanto amigos tocavam Shangri-Las, Nina Simone, Frank Ocean e Radiohead para ele, que flutuava em sua piscina aquecida. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um avatar da sombra e do vício’
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