Política
Duelo adiado
A disputa entre o lulismo e o bolsonarismo, ausente no primeiro turno, toma forma em algumas capitais


A nacionalização das eleições municipais no primeiro turno não aconteceu, nem mesmo em São Paulo, onde se imaginava a reedição da rivalidade entre o presidente Lula e Jair Bolsonaro em torno dos palanques de Guilherme Boulos e Ricardo Nunes. Lula e Bolsonaro não foram presenças marcantes no pleito paulistano, muito menos em outras cidades. Nas próximas duas semanas, o cenário tende, porém, a mudar. Lulistas e bolsonaristas vão enfrentar-se em algumas capitais, com destaque para Fortaleza, Cuiabá, Belém, Natal e Porto Alegre.
A capital cearense é o caso mais emblemático. De um lado está André Fernandes, deputado federal de primeiro mandato pelo PL, e, do outro, o presidente da Assembleia Legislativa do Ceará, Evando Leitão, candidato do PT com o apoio do governador Elmano de Freitas e do ministro da Educação, Camilo Santana. Investigado por incitar os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, Fernandes obteve 40,2% dos votos no primeiro turno, contra 34,33% de Leitão. Na sexta-feira 11, após o fechamento desta edição, estava prevista uma agenda oficial do presidente Lula em Fortaleza, que iria aproveitar a viagem e participar de atos de campanha do candidato petista. Bolsonaro ainda não confirmou se participará de comícios de Fernandes. A exemplo de outros postulantes, o parlamentar persegue os votos bolsonaristas, mas tem vergonha de aparecer em público ao lado do ex-presidente. “Quero que o André Fernandes mostre a cara e mostre o Bolsonaro em Fortaleza”, provocou Santana.
Os dois aliados se estranharam no fim do primeiro turno, depois de o candidato do PL em Fortaleza declarar apoio a Pablo Marçal, em São Paulo. Bolsonaro teria dado uma bronca em Fernandes e ameaçado anunciar adesão à candidatura de Capitão Wagner, nome escolhido pelo União Brasil, outro reacionário que evitou, durante a campanha, associar-se ao “mito”. Wagner mostrou mais uma vez sua vocação de “cavalo paraguaio”. Após aparecer em primeiro lugar nas intenções de voto durante a maior parte da corrida eleitoral, terminou em quarto lugar, com 11,4%. Pela terceira vez, ele larga na frente e naufraga nas urnas. “Dado o tamanho dos partidos e das figuras que os representam, teremos uma disputa bem acirrada em Fortaleza. O PT deve apostar suas fichas no discurso antibolsonarista e numa frente ampla pela democracia, o que, particularmente, não sei se será suficiente para frear André Fernandes, que chega no segundo turno bastante forte”, avalia a socióloga Monalisa Torres, professora da Universidade Estadual do Ceará. “Ele conseguiu uma projeção muito grande na cidade e uma penetração significativa nas periferias, capturando o eleitor antipetista, que, necessariamente, não é bolsonarista, conseguindo, inclusive, furar a bolha da extrema-direita e pegar a faixa moderada. Sem falar que Fernandes é hegemônico entre os evangélicos.”
Em Fortaleza, o petista Evandro Leitão e o bolsonarista André Fernandes personificam esse embate
Depois de Fortaleza, Lula segue para Belém, onde participa de uma romaria fluvial do Círio de Nazaré, e deve reforçar a campanha de Igor Normando, do MDB, primo do governador do Pará, Helder Barbalho. O emedebista teve 44,89% dos votos e disputa o segundo turno contra o delegado Éder Mauro, defensor do garimpo ilegal e escolhido por 31,48% dos eleitores da capital paraense. Uma vitória, pouco provável, de Mauro, negacionista climático, seria um desastre, pelo fato de a cidade sediar no próximo ano a COP-30, principal evento ambiental das Nações Unidas e oportunidade para o Brasil reforçar seu protagonismo internacional no tema.
A expectativa é de que Lula também visite Natal e reforce o palanque da deputada federal petista Natália Bonavides, segunda mais votada no primeiro turno, com 28,45%, contra 44,08% do primeiro colocado, Paulinho Freire, do União Brasil. O resultado da capital potiguar foi uma das surpresas dessas eleições, pois Bonavides passou a maior parte da campanha em terceiro nas pesquisas, atrás de Freire e do ex-prefeito Carlos Eduardo, que liderava a corrida e derreteu ao longo da disputa, vítima do voto útil. Para o cientista político Anderson Santos, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o segundo turno reproduz a polarização entre direita e esquerda. “Freire apresentou um palanque sólido de direita, assim como Bonavides personificou a candidatura de esquerda, enquanto Carlos Eduardo não se apresentou claramente ao eleitor e não tinha alianças significativas.” O candidato do UB tem apoio do prefeito Álvaro Dias e do senador bolsonarista Rogério Marinho, do PL. “A gente tem muito orgulho de ter feito uma campanha que foi de casa em casa, não comprou voto, não manipulou pesquisa, não assediou trabalhadores, respeitou a liberdade de o povo ir votar. Nossa candidatura foi a única que vinha crescendo em maior velocidade no primeiro turno e vamos continuar subindo e chegar em primeiro lugar no dia 27 de outubro”, discursa Bonavides. Além de Natal e Fortaleza, o PT disputa o segundo turno em Cuiabá, com Lúdio Cabral, contra o bolsonarista Abílio Brunini, e em Porto Alegre, com a deputada federal Maria do Rosário, que tem a inglória tarefa de derrotar o atual prefeito Sebastião Melo, do MDB, favorito.
Em Belo Horizonte, Bruno Engler surpreendeu na reta final, foi o mais votado no primeiro turno e vai enfrentar o prefeito Fuad Noman, apoiado pelo PT e pelo presidente Lula – Imagem: Redes sociais
Assim como em Natal, o resultado em Belo Horizonte também surpreendeu e o voto útil fez a diferença. O apresentador de tevê e deputado estadual Mauro Tramonte, do Republicanos, apoiado pelo governador Romeu Zema e pelo ex-prefeito Alexandre Kalil, liderou as pesquisas durante a maior parte da campanha, mas ficou de fora do segundo turno. Parte de seu eleitorado migrou para o azarão Bruno Engler, do PL, mais votado no domingo 6, com 34,38%. Engler vai enfrentar o atual prefeito Fuad Noman, do PSD, que cresceu paulatinamente e conseguiu chegar ao segundo turno. O PT e o presidente Lula declararam apoio a Noman.
Das 26 capitais em disputa, 11 escolheram prefeitos no primeiro turno e 15 vão definir o vencedor em 27 de outubro, assim como outros 37 municípios com mais de 200 mil eleitores. Ou seja, a maioria dos mais de 5,5 mil municípios elegeram os novos (ou velhos) administradores no domingo 6. As urnas confirmaram uma tendência histórica: as legendas de direita mantiveram o predomínio, reforçado pelo efeito do “orçamento secreto”. Nas cidades que mais receberam emendas parlamentares, o índice de reeleição passou de 90%. Houve também uma certa normalização do extremismo de direita, alojado principalmente no PL. Quem tem, no entanto, cantado vitória é o PSD, um partido, segundo sua principal liderança, Gilberto Kassab, “nem de esquerda, nem direita, nem de centro”. Pela primeira vez em duas décadas, o MDB não é a agremiação com o maior número de prefeituras. O título agora pertence ao PSD, por uma diferença de 30 municípios. PP, União Brasil, Republicanos e PL vêm em seguida. A turma do “Centrão” soma mais de 2 mil prefeituras.
O orçamento secreto desequilibrou a competição eleitoral em favor dos partidos do “Centrão”
O sucesso subiu à cabeça de Kassab, que se arriscou nos últimos dias a projetar o futuro político do País, embora a correlação entre as eleições municipais e a corrida presidencial seja historicamente tangencial. Os dados indicam uma correia de transmissão na escolha de prefeitos e vereadores e na votação de deputados federais, mas quase nenhuma relação no caso do presidente da República. O líder do PSD aproveitou a deixa, de qualquer forma, para (re)lançar ao Palácio do Planalto o nome do governador paulista, Tarcísio de Freitas, influente na ida de Nunes ao segundo turno em São Paulo, e alfinetar Lula. Segundo Kassab, Freitas, a quimera do “bolsonarista moderado”, é seu plano A e os mimos do petista aos partidos da base (leiam-se cargos e verbas) não garantem apoio à reeleição em 2026.
O PT recuperou algum terreno, após despencar no abismo em 2016 e 2020. A legenda conquistou 248 cidades, 66 a mais do que na eleição anterior. “O PT nunca foi muito forte nas eleições municipais. O partido tem um certo protagonismo nas disputas estaduais e para presidente, mas que não se reproduz nos pleitos municipais”, discorre a cientista política Luciana Santana, professora da Universidade Federal de Alagoas. “A gente tem de olhar com cautela para não achar que os petistas tiveram uma derrota neste ano. Ao contrário, na reta final a legenda acabou tendo um protagonismo importante que não pode ser desmerecido, a exemplo da disputa em Fortaleza, em Natal e no Piauí, onde nunca ganhou na capital e conseguiu um porcentual de votos considerável. Mesmo perdendo em Teresina, teve ali uma mobilização muito forte.” Na capital piauiense, faltou pouco para o petista Fábio Novo levar a disputa para o segundo turno. Ele teve 43,26% dos votos, 9 pontos a menos que Sílvio Mendes, do União Brasil, que venceu no primeiro turno com 52,19%.
Natália Bonavides conta com o apoio da governadora Fátima Bezerra para virar o jogo em Natal – Imagem: Redes sociais
O PSD garantiu no primeiro turno a reeleição de prefeitos em três importantes capitais: Rio de Janeiro, com Eduardo Paes, que obteve 60,47% dos votos, São Luís, com Eduardo Braide (70,12%), e Florianópolis, com Topázio Neto (58,49%). Ao fazer um balanço do resultado das urnas, Kassab falou em renovação política, disse que o perfil do eleitorado mudou, buscam-se governantes mais moderados, mas reconheceu que o montante de verbas das emendas parlamentares fez a diferença. “Faz sentido que tenham feito, sim. São recursos direcionados para intervenções importantes, geralmente discutidas com os próprios prefeitos. E o prefeito sabe o que a cidade precisa”, afirmou a O Globo.
“A figura do Kassab foi a que mais ganhou, do ponto de vista dos partidos e de ação política. Mas a gente que acompanha o crescimento do ‘Centrão’ também sabe que os partidos desse campo ganharam porque têm dinheiro. Algumas máquinas, seja na esfera estadual, municipal ou no Poder Legislativo, como as emendas parlamentarem, potencializaram o poder dessas legendas”, avalia a cientista política Vera Chaia, professora da PUC de São Paulo. Segundo um relatório produzido pela Patri Políticas Públicas, as campanhas municipais foram turbinadas com 60 bilhões de reais de verbas federais, entre emendas parlamentares (53 bilhões), fundo eleitoral (4,9 bilhões) e fundo partidário (1,2 bilhão). Em um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo, dos 28 municípios que mais receberam emendas do relator, em 23 os prefeitos eleitos são de partidos do ‘Centrão’ e nenhum será governado por legendas de esquerda.
Chaia cita o crescimento do “Centrão” e da direita nas eleições deste ano como consequência do desequilíbrio entre os poderes. “O presidente da República tem de fazer reuniões quase toda semana com as lideranças que o apoiam no Congresso e ceder para conseguir aprovar algum projeto, alguma lei. Isso faz com que o ‘Centrão’ ganhe uma presença marcante na cena política. Daqui para a frente, o que se pode esperar é um ‘Centrão’ ainda mais forte e a esquerda derretendo cada vez mais.”
Campeões de votos, Bruno Reis, JHC e João Campos são os rostos da “renovação” política
Das 15 capitais com segundo turno, o PL está em nove, com chances de vitória em sete, além das vitórias em Maceió, Rio Branco e Boa Vista. O bolsonarismo está presente ainda em palanques de outros partidos, como em Curitiba, com Cristina Graeml, do MDB. A comentarista política de extrema-direita obteve 31,17% e vai disputar com Eduardo Pimentel, filiado ao PSD e preferido por 33,51% dos eleitores no primeiro turno. Nenhuma surpresa: a capital paranaense, covil da Operação Lava Jato, será mais uma cidade administrada pelo reacionarismo, independentemente do vitorioso. Em Aracaju, antigo reduto petista, o PL despontou, mas enfrentará um páreo duro. A candidata do partido, Emília Corrêa, teve 41,62% dos votos e encara a força da máquina a favor de Luiz Roberto, do PDT, que recebeu 23,86%, e decidiu adotar um discurso antibolsonarista no segundo turno. “É possível que as candidaturas que saíram rachadas do governo estadual e foram derrotadas no primeiro turno voltem a se unir em torno de Luiz Roberto contra a Emília Corrêa”, projeta Saulo Barbosa, sociólogo e professor da Universidade Federal de Sergipe, em referência a Yandra Moura, do União Brasil, e da delegada Daniela Garcia, do MDB, ambas da base de sustentação do governo estadual. “O PT também deve indicar o voto útil em Luiz Roberto”. O pedetista tem o apoio do governador Fábio Mitidieri e do prefeito Edvaldo Nogueira.
O PL elegeu no primeiro turno o segundo prefeito mais votado do País, João Henrique Caldas, vulgo JHC, reeleito em Maceió com 83,25% dos votos, atrás apenas do emedebista Doutor Furlan, prefeito de Macapá, reconduzido ao cargo por 85,08% do eleitorado. Outros campeões de votos são os prefeitos de Salvador e do Recife, Bruno Reis (UB) e João Campos (PSB), respectivamente reeleitos com 78,67% e 78,25%.
Eduardo Paes esconjurou o fantasma do bolsonarismo e levou no primeiro turno com cerca de 60% dos votos válidos – Imagem: Redes sociais
Para o cientista político Cláudio André de Souza, professor da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), além de comandar importantes capitais do Nordeste, JHC, Campos e Reis têm em comum um perfil político ancorado no centro, flertando com a direita, e uma presença marcante nas redes sociais que faz toda a diferença na comunicação com o eleitorado. Ter gestões bem avaliadas também pesou para o bom desempenho nas urnas, cacifando-os para uma posição de liderança política em ascensão. “Bruno Reis, JHC e João Campos entenderam que era necessário aumentar o grau de engajamento, de humanização das suas imagens nas redes sociais. São políticos jovens, digitais, e, portanto, tentam mostrar-se como a ‘renovação’ da política. De alguma forma, o eleitor tem cobrado isso, quer figuras que liderem o processo político numa perspectiva que passa a imagem de renovação, modernos e mais preparados”, ressalta Souza, citando o exemplo de Reis, em Salvador, que tem o apoio de ACM Neto, mas tenta alicerçar uma imagem alternativa e renovadora do carlismo baiano.
“É preciso compreender que existe uma mudança na sociedade. Não dá mais para você falar os mesmos slogans, fazer a mesma política de décadas atrás. Agora, a situação é outra, os eleitores são outros. Precisa mudar a maneira de interagir com a sociedade, de pensar numa comunicação mais efetiva. Porque a dominância nesse campo é da extrema-direita ou da direita. A forma de elas se comunicarem é mais fácil, elas detectam os problemas e vão explorando de uma forma que prende os eleitores. Falta à esquerda compreender que o mundo mudou, a política mudou, a maneira de se comunicar se alterou também”, diz Vera Chaia. •
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Duelo adiado’
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