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Um estado de espírito

Uma exposição em cartaz no Centro Pompidou expande a compreensão do Surrealismo para além do grupo que o forjou

Um estado de espírito
Um estado de espírito
Resgates. O Império das Luzes, de René Magritte, foi emprestado de um museu de Bruxelas. A presença de A Revolta das Mulheres, de Rita Kernn-Larsen, recupera as obras assinadas por artistas mulheres – Imagem: Centro Pompidou
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Há cem anos nascia o Surrealismo. Em outubro de 1924, a principal figura do grupo, André Breton, escreveu o texto que ficaria conhecido como o manifesto inaugural do movimento.

Em princípio, o Surrealismo era a variante francesa de mais uma das vanguardas artísticas que proliferavam na Europa da época: o Expressionismo na Alemanha, o Futurismo na Itália ou na Rússia, e o Dadaísmo na Suíça. Foi a partir do diálogo com esse último, aliás, que o grupo foi formado.

Em comum, todas elas questionavam as fronteiras entre a arte e a vida, mobilizando seus princípios estéticos em favor de uma nova concepção da realidade, diferente da mera representação “realista”.

Mas o desenvolvimento do Surrealismo foi revelando que, mais que uma vanguarda como as outras, com um começo, meio e fim datado no tempo, o movimento expressava um verdadeiro estado de espírito, ou seja, uma forma de tomada de posição – existencial e política – diante do mundo.

Tanto é assim que ele sobreviveu à própria autodissolução, decretada por ­Breton em 1969, tendo continuado a manifestar-se na França, na Bélgica, no Brasil, nos Estados Unidos e em vários outros países.

E tentar dar conta dessa abrangência é, sem dúvida, o principal mérito da exposição blockbuster Surrealismo: Primeiro e Sempre, aberta em setembro no Centro Pompidou, em Paris, em celebração ao centenário do movimento.

A exposição fica no Pompidou até janeiro e segue, em 2025, para Madri, Hamburgo e Filadélfia – a ideia é que cada museu, espelhando a proposta original da exposição, conte também sua própria histó­ria do Surrealismo.

A curadoria, ao mesmo tempo, minimiza os aspectos políticos do movimento

O museu francês apresenta o movimento não apenas por meio de suas figuras mais conhecidas, do grupo original parisiense, mas em toda a sua diversidade histórica, geográfica – e, inclusive, de gênero.

Vemos em cena uma perspectiva que, na sua oposição radical à racionalidade burguesa, a mesma que havia levado o mundo à Primeira Guerra Mundial, explorou múltiplos caminhos estéticos e políticos. Como escreve Breton no primeiro manifesto, publicado em outubro de 1924, “não é o temor da loucura que vai nos obrigar a içar a meio pau a bandeira da imaginação”.

A exposição reúne documentos literários, desenhos, pinturas, fotografias e filmes emblemáticos do Surrealismo. São apresentadas obras de Salvador Dalí, de René Magritte, de Pablo Picasso, Giorgio de Chirico, de Max Ernst, de Joan Miró, dentre muitos outros. Mas estão lá também trabalhos de mulheres surrealistas, geralmente relegadas ao segundo plano, tais como Leonora Carrington, Grete Stern, Remedios Varo, Ithell ­Colquhoun, Dora Maar e Dorothea Tanning.

O percurso começa por um corredor escuro pouco criativo, em que estão expostos retratos fotográficos dos primeiros membros do grupo. O objetivo é, aparentemente, nos fazer adentrar na atmosfera surrealista para, a partir daí, chegarmos ao núcleo da exposição, uma sala redonda cujo centro é ocupado pelo manuscrito original do manifesto.

Ao fundo, escutamos a voz do próprio Breton – recriada por Inteligência Artificial – lendo alguns trechos do texto, opção no mínimo paradoxal, dada a crítica radical dos surrealistas ao progresso técnico.

Em torno do manifesto, a exposição organiza-se em 13 capítulos, inspirados em personagens precursores (como Lautréamont, Lewis Carroll e Sade) ou em temas (a floresta, a noite, o sonho, o erotismo…) explorados pelo movimento.

O trajeto segue a forma de espiral, não sem causar alguma vertigem, em meio à diversidade de objetos e materiais a que somos confrontados.

Desejos e conquistas. O Anjo Doméstico (O Triunfo do Surrealismo), de Max Ernst, e O Grande Masturbador, de Salvador Dalí, estão na grande mostra – Imagem: Centro Pompidou

A consequência dessa opção curatorial é uma certa dispersão narrativa, que acaba reforçando algumas caricaturas ligadas ao Surrealismo, como quando nomeamos como “surreal” algo inexplicável ou inacreditável.

Além do mais, a dimensão política do movimento – cujos membros passaram pelo comunismo, pelo trotskismo, pelas lutas anticoloniais etc. – acaba por ser abafada pela enorme quantidade de obras e documentos. Quando expostos, os escritos políticos do surrealismo estão discretamente posicionados na ­saída de cada sessão.

Críticas à parte, é preciso reconhecer que, ao menos, saímos do labirinto com uma visão ampliada de um movimento muitas vezes resumido a Breton e a seus colegas da primeira fase – Paul ­Eluard, Louis Aragon, Pierre Naville etc. A exposição nos mostra que a interrogação surrealista sobre os nossos modos de ver e de perceber o mundo continua não apenas atual, como, mais que nunca, necessária.

Afinal de contas, ainda estamos diante da tarefa que, em 1935, André Breton defendeu em discurso no Congresso dos escritores antifascistas, apoiando-se ao mesmo tempo em Marx e em Rimbaud. A saber: a de que é preciso mudar a vida para transformar o mundo, e mudar o mundo para transformar a vida. •


*Professor de Sociologia na Unicamp, Fabio Mascaro Querido é professor convidado na Universidade Paris-Cité.

Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um estado de espírito’

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