CartaCapital
O bobo que queria ser rei
Caso a jurisprudência eleitoral seja respeitada, Pablo Marçal acabará proibido de concorrer por longo tempo


O candidato Pablo Marçal transformou-se em um fenômeno desta eleição, atraindo a curiosidade para além dos eleitores da cidade de São Paulo. Navegando na mesma extrema-direita de Jair Bolsonaro, mas sem as bênçãos explícitas deste, apareceu como uma alternativa aos políticos e partidos mais tradicionais. Enquanto o ex-capitão se adaptou às mídias sociais, o coach é cria desse novo mundo.
A estratégia de Marçal era se comportar desrespeitando qualquer manual de política e de boas maneiras. Conseguiu chamar a atenção dos eleitores mesmo sem tempo na tevê ou um partido político de peso. Os veículos de comunicação o incluíram nos debates sem ser obrigados pela legislação, e suas palhaçadas, grosserias e mentiras renderam até mesmo uma cadeirada do candidato José Luiz Datena. Marçal, após o episódio, foi parar num hospital e ostentou o braço enfaixado por semanas, em dramatização que lembra muito José Serra na eleição presidencial de 2010. Naquela ocasião, o candidato do PSDB, que disputava a eleição contra Dilma Rousseff, fez um escarcéu por causa de uma bolinha de papel que atingiu sua cabeça. O Jornal Nacional, inclusive, fez o papelão de chamar especialistas para analisar imagens frame a frame do “atentado”, mostrando que Serra tinha sido atingido, na verdade, por um rolo de fita adesiva.
A estratégia do coach parecia que daria certo. As pesquisas indicavam que ele estava em ascensão e que poderia ir para o segundo turno para prefeito em São Paulo. Na noite de sexta-feira 4, entretanto, antevéspera da eleição, ele decide divulgar um atestado que supostamente comprovaria que Guilherme Boulos era usuário de cocaína, acusação que Marçal já havia feito em debates anteriores. O documento divulgado em suas redes sociais era uma grosseira falsificação. A bomba destinada ao candidato do PSOL, apoiado por Lula, estourou no colo de Marçal e pode ter custado os votos que lhe faltavam para ir ao segundo turno.
A pergunta que ficou no ar é por que Marçal, que tinha adotado uma postura de candidato sério e com propostas no debate da TV Globo, partiu para uma atitude como essa?
A Justiça tem de aplicar a mesma regra usada para tornar Bolsonaro inelegível
Hipóteses não faltam. Uma é de que ele, que quase matou seus seguidores ao conduzi-los numa escalada na cidade de Piquete (SP), em 2022, é limitado, para não dizer burro mesmo. Outra atribui a ele uma racionalidade estratégica que não deu certo: Marçal tentou uma bala de prata e não contava ser desmascarado tão cedo. Acreditava que, quando a farsa fosse descoberta, já estaria no segundo turno e criaria embaraços para a Justiça Eleitoral agir contra alguém que tinha sido vitorioso nas urnas. Há também uma terceira explicação, com duas conclusões possíveis: 1. Marçal não queria vencer a eleição porque, na verdade, quer disputar a Presidência da República em 2026. 2. Ele somente buscou se promover para ganhar mais dinheiro no seu negócio de enganar incautos com “conselhos empreendedores”.
Talvez não tenhamos nunca a resposta se foi isso que tirou Marçal do segundo turno e qual foi sua verdadeira motivação. O que sabemos, contudo, é que ele colocou a Justiça Eleitoral numa sinuca de bico: ou o coach, dublê de candidato, tem seus direitos políticos cassados, e assim fica inelegível por oito anos, ou o Judiciário cai em descrédito e sinaliza que não regula o processo eleitoral. Até o momento, dezenas de ações correm na Justiça contra o candidato, o que comprova que a falsificação do laudo fez parte de uma estratégia deliberada de campanha. Se a jurisprudência for observada, especialmente pela postura dura do TSE em tempos de Bolsonaro, Marçal não poderá disputar eleições até, ao menos, 2032. E isso seria uma boa notícia.
Como em qualquer disputa, eleições devem, necessariamente, ter as regras observadas por todos os competidores. É assim nos esportes, é assim na política. Não fazem parte da democracia mentiras e falsificações. A extrema-direita parece não levar esse pressuposto a sério. Na lógica deles, vale qualquer coisa para manipular os eleitores. Bolsonaro está inelegível por propagar mentiras sobre o sistema eleitoral. Marçal dobrou a aposta mentindo descaradamente sobre um adversário. Até o momento, os eleitores vão cumprindo sua parte. Tanto o ex-presidente quanto o coach perderam nas urnas. Mas isso pode não ser suficiente em futuros pleitos. A Justiça Eleitoral deve ser dura com Marçal como foi com Bolsonaro. Neste jogo com regras, somente o resultado deve ser imprevisível. •
*Doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a Erosão da Democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona. Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2024 uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações,
ver: https://observatoriodaseleicoes.com.br.
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O bobo que queria ser rei’
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