Rita Cristina de Oliveira

ritacristina@cartacapital.com.br

Defensora Pública Federal. Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná.

Opinião

O consumo da representatividade

Um feminismo que transcende o viés branco e elitista precisa ir além da inclusão simbólica de mulheres, pessoas racializadas e LGBTQIA+ em espaços tradicionalmente inacessíveis

O consumo da representatividade
O consumo da representatividade
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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Certa vez participei de um evento público de lançamento de um documento repleto de propostas de enfrentamento ao racismo e um certo comportamento reiterado de personalidades políticas e de profissionais da imprensa me causou um peculiar incômodo. A forma como a maior parte deles estava essencialmente interessado em obter fotos de mulheres negras, intelectuais com trajes e acessórios de estética africana. Homens e mulheres negras sem essa estética eram praticamente ignorados, assim como o conteúdo das propostas fora relegado a um contexto completamente secundário. A sensação que eu tive é que aquelas mulheres exuberantes em sua estética africanista estavam sendo consumidas por desejos individuais e coletivos de ostentar um outro fetichizado.

Não pude deixar de me lembrar do que bell hooks descreveu, em Olhares Negros, Raça e Representação, como “apropriação cultural do Outro” e que serve ao alívio dos sentimentos de privação e de vazio neoliberais que assaltam a psique da branquitude para trair – superficialmente, acrescento – os valores ocidentais ao mesmo tempo em que grupos marginalizados considerados Outros, historicamente ignorados, são seduzidos pela comodificação da Outridade, que lhes oferece promessas de reconciliação e reconhecimento – aparentes, acrescento.

De forma semelhante, Rafia Zacaria, autora de Contra o Feminismo Branco, descreveu sua frustrante experiência de participação em uma feira global em que percebera o apetite de mulheres brancas sobre a outridade de mulheres marrons, negras e asiáticas, aduzindo que estas eram “apenas sabores a serem consumidos em um grande buffet de países e culturas expostas para clientes brancos” cuja prática estava impregnada e enraizada nos mais antigos contatos entre o feminismo branco e as mulheres de cor.

Com efeito, as dinâmicas capitalistas historicamente são transformadoras de crises e tensões sociais em novas oportunidades de exploração. A questão que se coloca nesse processo, entretanto, é quão progressistas ou emancipatórios, de fato, são os avanços obtidos a partir das concessões liberais que buscam alterar a iconografia social.

Uma grande aposta neoliberal diante do avanço das agendas identitárias de raça e gênero nesse tempo em que as redes sociais dinamizam os hábitos de consumo e espremem o mercado de negócios a parecerem sustentáveis diante de desigualdades históricas está na representatividade. É nessa perspectiva que autoras como Beck e Zacaria questionam os avanços do feminismo branco, em especial no que se considera sua quarta onda.

Rafia questiona de forma contundente o individualismo identificado no histórico do feminismo branco e cujas dinâmicas atuais reproduzem um processo de assimilação de identidades não ocidentais destinado à revalorização do papel social e político de mulheres brancas a partir de questionáveis concepções de empoderamento em favor de projetos segmentados de poder e empreendedorismo individual de índole neoliberal, em menosprezo a valores comunitários não ocidentais.

Beck pergunta quem são as sujeitas que estariam sendo deixadas para trás pelos avanços rasos de uma mobilização feminista mundial que falha mais uma vez em questionar as estruturas opressoras do capitalismo. Isso porque a pauta reduzida à igualdade de gênero na superfície de buscar a ocupação de espaços de poder e de decisão no topo de estruturas patriarcais e capitalistas que não se pretende alterar, desconsidera o fato de que a ascensão de algumas mulheres a espaços de CEOs, Diretorias Executivas a postos políticos conciliadores, significa apenas um retrato mais diverso, mas que segue deixando outras tantas e tantos, pertencentes a grupos historicamente marginalizados, esmagados na base dessas mesmas estruturas.

Ao aproximarmos a crítica de Beck e Zacaria para as questões de justiça social que afligem o Brasil, é possível inferir que um feminismo, não essencialmente branco e elitista, implica um compromisso profundo com o rompimento de estruturas que impõem uma realidade desoladora de desigualdades profundas a uma esmagadora maioria da população, que não passa apenas por ver mais mulheres, pessoas racializadas e LGBTQIA+ em cenários antes inusitados.

Nesse sentido, o enfrentamento das questões socioeconômicas que mantém dinâmicas sociais escravistas como a política de drogas, o encarceramento em massa, as formas contemporâneas de superexploração do trabalho, especialmente o doméstico, os conflitos fundiários e as persistentes formas análogas à escravidão deve ser assumido como compromisso prioritário. Do contrário, o feminismo propagado não passa de mero artifício para o enriquecimento de arranjos de governança e compliance que se dedicam a customizar as agendas identitárias e transformá-las em ativos de lucratividade de profissionais da arte de tornar consumível a representatividade, em especial escritórios de advocacia e organizações sociais especializadas em angariar poder político.

Nos tempos em que as hashtags multiplicam rapidamente os cifrões na venda de ideologias aparentes e matérias capazes de produzir engajamentos, o fetiche pela outridade tem sido o véu perfeito que esconde decisões que apenas podem tornar o cenário da desgraça dos grupos socialmente menos favorecidos mais colorido

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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