Mundo
Um fim em si
Belicistas modernos expandem os limites da desumanidade


Uma regra de ouro da política: os líderes nacionais não interferem nas eleições de outros países. Diga isso a Volodymir Zelensky, que saltou no meio da campanha presidencial dos Estados Unidos com os dois pés e botas de combate tamanho 44. O baque resultante e retumbante pôde ser ouvido até em Kiev. Ao visitar uma fábrica de munição na crucial Pensilvânia, o presidente da Ucrânia, cansado da guerra, disse ao candidato republicano Donald Trump que, em relação à política de cortar o fornecimento de armas e aceitar a paz nos termos de Vladimir Putin, ele falava besteira. E o companheiro de chapa excêntrico de Trump, J.D. Vance, é simplesmente “perigoso”, acrescentou.
Os comentários diretos de Zelensky e seu abraço caloroso em Josh Shapiro, governador da Pensilvânia e aliado próximo da rival de Trump, a democrata Kamala Harris, fizeram os republicanos cuspir sangue. O presidente da Câmara, Mike Johnson, denunciou a visita como um “evento de campanha partidária projetado para ajudar os democratas”. O filho tagarela do ex-presidente, Donald Trump Jr., também ficou indignado com a intervenção coruscante. “Um líder estrangeiro que recebeu bilhões de dólares em financiamento de contribuintes norte-americanos vem ao nosso país e tem a coragem de atacar a chapa do Partido Republicano para presidente? Vergonhoso”, irritou-se.
Por mais divertido que tudo seja, ilustra um fenômeno moderno mais amplo e problemático. Em um mundo inescapavelmente interconectado, para distorcer uma frase bem conhecida, toda política é global. A guerra da Ucrânia importa na eleição dos Estados Unidos. Muitos ucranianos e poloneses-americanos vivem na Pensilvânia, e seus votos podem decidir quem ganha o estado e, portanto, a Casa Branca.
É muito parecido com a guerra em Gaza e no Líbano, onde a conivência percebida de Joe Biden com o governo criminalmente agressivo e de extrema-direita de Israel alienou os eleitores democratas e independentes dos Estados Unidos. Por outro lado, a futura abordagem de Trump e Harris afeta os cálculos dos líderes em Jerusalém – e em Teerã também. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu curva-se à pressão liderada pelos norte-americanos para aceitar um cessar-fogo geral, ou ele continua a lutar na esperança de que o menos escrupuloso e mais compatível ideologicamente Trump vença em novembro? Sem dúvida, Putin segue raciocínio semelhante, em busca de uma maneira facilitada por Trump de escapar de seu atoleiro na Ucrânia enquanto ainda reivindica a vitória.
O presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, ofereceu um notável ramo de oliveira ao Ocidente na Assembleia-Geral da ONU, propondo reviver o pacto nuclear destruído por Trump em 2018. Ele entende que, se o republicano voltar, o destino de seus aliados do Hezbollah no Líbano poderá ser a menor de suas preocupações. O confronto direto Israel–Irã–EUA estará novamente na agenda.
Não há duas guerras iguais, e isso vale para a Ucrânia e o Oriente Médio. Mesmo se deixarmos de lado a política dos EUA, vários outros aspectos externos são comuns a ambas. Um deles é a crescente divisão, em exibição na Assembleia-Geral da ONU nos últimos dias, entre o Ocidente e o Sul Global – países como Brasil, México e Índia – sobre a melhor forma de abordar os conflitos. Esse impasse reflete em parte a paralisia, causada principalmente pelos Estados Unidos, a Rússia e a China, que tornou o Conselho de Segurança da ONU, cronicamente não reformado e não ampliado, inadequado para o propósito. Resoluções de cessar-fogo em ambas as guerras foram repetidas e irresponsavelmente vetadas. O multilateralismo está em suas últimas etapas, alerta o secretário-geral da organização, António Guterres.
A principal crítica dirigida aos governos ocidentais, que eles seguem um duplo critério ao condenar as enormes baixas civis na Ucrânia enquanto continuam a armar Israel, que inflige destruição semelhante, é, no entanto, difícil de refutar. Ela alimenta um discurso mais amplo de excepcionalismo ocidental que prejudica, entre outros, a ação colaborativa sobre o clima. O que mais os conflitos na Ucrânia, Gaza e Líbano têm em comum? São economicamente desastrosos para todos os envolvidos. A Rússia sofreu sérios danos, em parte devido às sanções ocidentais, mas principalmente pelo enorme custo financeiro da guerra. O PIB de Israel contraiu 4,1% após 7 de outubro, diz a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, e a queda continua. O sofrimento palestino extremo em Gaza não precisa ser elaborado aqui.
Os conflitos na Ucrânia e em Gaza viraram um cemitério da diplomacia
Ambos os conflitos são um cemitério diplomático. Os mediadores egípcios e cataris frustrados em Gaza quase desistiram. Antony Blinken, o secretário de Estado dos EUA, fez várias viagens ao Oriente Médio e voltou para casa de mãos vazias todas as vezes. Turquia, Brasil e China lançaram planos de paz para a Ucrânia. Zelensky tem um “plano de vitória”. Nenhum prosperou.
Os protagonistas em ambos os conflitos continuam a desrespeitar as convenções de Genebra e o direito internacional humanitário em um grau possivelmente sem precedentes. Civis são rotineiramente alvejados, enquanto autoridades mentirosas negam categoricamente tê-los como alvo. Dezenas de milhares morreram. Reféns foram feitos em ambos os conflitos. Ninguém é poupado. Em Gaza, mais de 16 mil crianças foram mortas. Chocante, também, é a impunidade desfrutada pelos líderes guerreiros. Putin foi acusado de supostos crimes de guerra no ano passado pelo Tribunal Penal Internacional. Ele não só não foi preso, como recentemente foi recebido com tapete vermelho na Mongólia, signatária do TPI.
Da mesma forma, o promotor-chefe do TPI solicitou em maio um mandado de prisão para Netanyahu, juntamente com líderes do Hamas, por supostos crimes de guerra. Ele ainda não foi emitido. Por quê? Uma decisão, em julho, do Tribunal Internacional de Justiça da ONU, declarando ilegal a ocupação de território palestino por Israel e ordenando uma retirada, é desdenhosamente ignorada.
A brutal repressão à dissidência, à liberdade de expressão e à mídia independente na Rússia, além da perseguição e o assassinato de críticos do regime no exterior encontra eco na matança deliberada e proibição de jornalistas pelo exército israelense, na recente assunção de poderes especiais pelo governo e no fechamento de veículos de notícias críticos, como a TV Al Jazeera. Esses são precedentes alarmantes para as guerras do futuro. Mais que nunca, belicistas modernos como Putin e Netanyahu usam o conflito para consolidar seu poder, desafiando a responsabilidade democrática, rasgando o livro de regras internacionais, quebrando tabus e expandindo os limites externos da desumanidade. A guerra torna-se a justificativa do injustificável. A guerra torna-se um fim em si mesma. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um fim em si’
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