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Bucha de canhão

Enfraquecida, a junta militar de Mianmar recruta jovens à força

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O exército pretende reunir 60 mil novos combatentes – Imagem: STR/AFP
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Than Htun*, 29 anos, ainda estava na cama quando os homens chegaram em sua casa, em Yangon, para buscá-lo. “Ele não conseguiu preparar nada. Eles mandaram que levasse apenas sua carteira de identidade, uma cópia do registro no Censo e duas mudas de roupa”, lembrou a irmã, Khin May. O grupo de soldados e autoridades locais recrutaram à força Than Htun para o exército de Mianmar. Ele seria obrigado a lutar pela junta amplamente odiada no país na guerra feroz contra combatentes pró-democracia e grupos étnicos armados.

A junta militar de Mianmar implementou uma lei de recrutamento obrigatório pela primeira vez neste ano, medida que gerou terror em todo o país. Quem tinha meios escapou imediatamente. Vendeu tudo o que possuía e assumiu dívidas para financiar a fuga. Filas se estenderam durante horas diante das embaixadas e muitos viajaram para áreas sob o controle de grupos de oposição.

Quem ficou em cidades controladas pelos militares, como Yangon, vive com uma sensação constante de medo e paga suborno às autoridades locais para não ser convocado. Famílias contaram que seus entes queridos foram arrancados de casa e forçados a se alistar, ou tirados das ruas por soldados.

Desde abril, quando o exército iniciou o processo de recrutamento, obrigatório para homens de 18 a 35 anos, acredita-se que 25 mil foram levados para campos de treinamento e 5 mil foram enviados às linhas de frente. Os militares enfrentam uma grave escassez de pessoal após uma série de derrotas e deserções humilhantes, e a lei de recrutamento pode ser crítica para sua sobrevivência. Mais de três anos após tomarem o poder com um golpe que derrubou o governo de Aung San Suu Kyi, são incapazes de deter grupos armados que se opõem ao governo e perderam o controle de vastas áreas ao longo das fronteiras. “Os militares perdem continuamente”, avalia Morgan Michaels, pesquisador associado de política e política externa do Sudeste Asiático no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. “Essas perdas, se continuarem nesse nível, não serão sustentáveis.”

As derrotas militares aumentaram desde outubro do ano passado, quando uma coalizão conhecida como Aliança da Fraternidade lançou uma ofensiva de surpresa no norte do estado de Shan. Os militares tentavam controlar grupos contrários à junta, chamados de forças de defesa do povo e formados por civis após o golpe para se opor à ditadura, frequentemente com o apoio de algumas das facções étnicas armadas mais antigas na luta por independência. A entrada da Aliança da Fraternidade no conflito tensionou ainda mais os militares. Nos meses seguintes, milhares de soldados, incluindo batalhões inteiros, teriam se rendido.

Pouco se sabe sobre o treinamento dos recrutas. Muitos temem que sejam usados como bucha de canhão ou carregadores, na verdade, escudos humanos enviados para limpar minas ou proteger soldados de tiros. Os militares tranquilizaram a família de Than Htun, dizendo que ele seria enviado para treinamento e depois retornaria a Yangon para trabalhar como guarda de segurança. “Para nós, foi um alívio ouvir isso”, disse Khin May. Não era verdade. Em vez disso, Htun foi enviado para o estado de Rakhine, na fronteira ocidental, o centro de alguns dos piores combates, onde os militares estão desesperadamente tentando conter o Arakan, grupo integrante da Aliança.

Desde abril, mais de 25 mil homens foram retirados de casa para defender os golpistas

Htun ligava para sua família sempre que conseguia sinal de telefone. Sua irmã se lembra de cada conversa. No início, ele foi designado como segurança numa área central da capital do estado, Sittwe. Então, contou à família ter sido obrigado a embarcar em um navio para Maungdaw, no norte de Rakhine, mas uma forte tempestade os deixou a vagar no meio do mar. “A comida tinha acabado e eles foram forçados a beber água da chuva”, relata a irmã. Outros enfrentaram um destino pior: ficaram feridos depois que uma das embarcações do exército foi atacada por um drone.

A junta planeja recrutar até 60 mil civis até o fim do ano, com a mídia controlada pelo regime a dizer que isso ajudará na eliminação dos oponentes. Segundo os meios de comunicação, são terroristas que querem desestabilizar o país. Em uma declaração na quinta-feira 26, os militares disseram ter convidado grupos de “terroristas” a parar de lutar e resolver problemas politicamente por meio de eleições. Entre o público, a proposta foi amplamente vista como delirante e hipócrita. Horas depois, os militares ­realizaram ataques aéreos no norte do estado de Shan. Grupos alinhados ao movimento pró-democracia querem a saída total dos militares da política, algo que a junta provavelmente não aceitará.

Htun estava entre as centenas de milhares de cidadãos que foram às ruas pedir o retorno da democracia depois que os militares tomaram o poder, em 1º de fevereiro de 2021. As forças armadas responderam aos protestos pacíficos com tiros e prisões. O conflito que se seguiu virou o país de cabeça para baixo. Serviços básicos como assistência médica entraram em colapso, milhões foram deslocados e as taxas de pobreza dispararam. De acordo com a ONU, quase metade da população vivia abaixo da linha nacional de pobreza, de 1.590 kyats (cerca de 3 ­reais) por dia até o fim de 2023, acima dos 24,8% em 2017.

O recrutamento obrigatório, que afastou os jovens, só piorou as dificuldades econômicas. Saw John é outro jovem sequestrado. Ele entregava comida de bicicleta para viver e era o único ganha-pão na casa que dividia com os pais idosos. John foi levado para uma delegacia de polícia por recusar o recrutamento, depois para um centro de interrogatório e, mais tarde, para um campo de treinamento no estado de Shan. Foi prometido apoio aos pais, mas isso nunca aconteceu. Incapazes de pagar o aluguel, eles foram expulsos pelo senhorio. A mãe de Saw John morreu no fim de agosto. “Eu acho que ela morreu de angústia mental depois de perder o contato com o filho”, disse sua amiga próxima Win Khaing. “Depois que o filho foi preso, eles mal conversavam. Eu fiquei de olho neles à noite durante um mês, porque estava preocupada que eles pudessem tentar o suicídio.” Khaing sentiu-se indignada. “Mas não posso fazer nada, porque sou apenas humana. Não posso me proteger de armas. Não quero ser torturada pelos soldados.” •


*Os nomes dos entrevistados foram alterados em todo o texto.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bucha de canhão’

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